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    Moradores de Lugansk tentam resistir aos avanços dos militantes pró-Rússia

    LUKE HARDING
    DO "GUARDIAN", EM LUGANSK

    01/05/2014 13h16

    Diante da sede da polícia em Lugansk, ontem (30 de abril), Tatiana Pogukay estava quase em lágrimas. "Ainda estamos aqui", ela disse. "Não nos rendemos. Mas Kiev nos abandonou."

    Sua emoção era compreensível. Na noite anterior, ela e seus colegas tinham enfrentado um ataque de 50 separatistas pró-russos armados. Os atiradores, trajando uniformes militares, tentaram invadir o prédio da polícia. Um deles disparou tiros de aviso no ar; alguns subiram sobre o telhado, e outros bateram um caminhão Kamaz contra a entrada dos fundos.

    Os policiais dentro do prédio conseguiram resistir. Desde as janelas do andar superior, jogaram granadas de fumaça e de choque contra os atacantes. Um grupo de recrutas assustados teve permissão para ir embora. Os separatistas acabaram recuando, com a polícia ainda no controle, pelo menos por enquanto, de seu QG de quatro andares. "Não entregamos nossas armas. Defendemos este lugar com honra", disse Pogukay, que é coronel da polícia.

    Apesar de alguma resistência heroica, a realidade é que a maior parte do leste da Ucrânia hoje é um reduto separatista. A balança de poder está se afastando inexoravelmente do assediado governo de Kiev, em favor de militantes apoiados por Moscou que estão prestes a declarar seu próprio Estado autônomo.

    Com seus prédios de apartamentos da era de Khrushchev e edifícios stalinistas neoclássicos, Lugansk, cidade de 445 mil habitantes, já se parece com a Rússia. A fronteira russa fica a pouco mais de 32 quilômetros de distância. Em questão de semanas, Lugansk ou fará parte da Rússia ou de uma entidade política aliada a ela.

    Ontem os soldados voluntários da cidade estavam descansando, após 24 horas extraordinárias em que tomaram o poder municipal. No início de abril, uma milícia liderada por veteranos da guerra entre a URSS e o Afeganistão ocupou o QG do serviço de segurança, no centro de Lugansk. Os milicianos serviram-se de equipamentos do arsenal temível que ali havia: Kalashnikovs novas, pistolas, granadas e lançadores de foguetes.

    Na semana passada surgiu um novo "governador do povo" aprovado por Moscou, Valery Bolotov. Ele enviou uma lista de "reivindicações" a Kiev, definindo um prazo para que fossem atendidas. O prazo se esgotou na segunda-feira.

    Um dia depois, não tendo recebido resposta, os rebeldes lançaram um golpe, que ocorreu sem transtornos. Primeiro uma multidão de 3.000 pessoas cercou o prédio da administração regional de Lugansk, que dá para um parque e uma estátua do poeta Taras Shevchenko.

    Dois jovens mascarados quebraram as janelas com pés de cabra, e então a multidão entrou no recinto. Policiais de choque cercados num pátio não apresentaram resistência. Humilhados, acabaram indo embora.

    Ontem, voluntários armados e mascarados montavam guarda diante de seu novo QG. Sacos de areia tinham sido empilhados diante das janelas do térreo, e uma barreira de pneus estava tomando forma na calçada. Um miliciano, Alexander, se dispôs a bater papo. Disse que, apesar da mudança de direção, a administração regional está funcionando normalmente, com os funcionários municipais trabalhando como antes.

    "Nossa tarefa é examinar os documentos de identidade", ele disse. Uma pessoa lhe desejou sorte e lhe deu um maço de cigarros Bond Street. Um grupo de mulheres ao lado discutia os acontecimentos dramáticos do dia anterior.

    Uma senhora mais velha parecia confusa com a rápida transferência do controle. Perguntou a Alexander se ele tinha vindo do Maidan, o movimento de protesto pró-ocidental de Kiev. "Somos contra o fascismo", ele respondeu.

    A senhora continuou confusa. Outra mulher interveio, dizendo: "Não se preocupe, querida. Tudo vai voltar a ser como era na União Soviética. Teremos nosso Dia da Vitória no dia 9 de maio. Vai ficar tudo bem."
    O rosto da idosa se desanuviou. Ela segurou a mão de Alexander e lhe disse "a história vai se lembrar de vocês".

    Com o rosto encapuzado, Alexander se negou a informar seu sobrenome. Mas disse que é mineiro, tem 39 anos e é pai de família. Explicou que um "referendo" sobre o status futuro de Lugansk terá lugar em 11 de maio. Depois disso, falou, a região provavelmente se integrará à Rússia, mas ele não tinha certeza. Por que ele entrou para a "milícia do povo de Lugansk"? "O poder foi tomado por fascistas em Kiev", respondeu. "O Dia da Vitória é sagrado para nós. Ouvi dizer que o governo de Kiev quer substituí-lo por uma marcha de orgulho gay."

    Os insurgentes agora ocupam praticamente todas as repartições públicas de Lugansk. Ontem, homens armados patrulhavam a parte externa da sede da prefeitura, também tomada na terça-feira. Um deles portava um Kalashnikov decorada nas cores russas, vermelho, branco e azul. Outros estavam no gabinete do procurador, na mesma rua, olhando para fora, e emergiram para varrer vidro quebrado durante sua invasão na noite anterior. Uma nova bandeira tricolor russa estava hasteada no tribunal regional de apelações. Membros da milícia também foram à emissora de TV para bater um papo.

    A história se repete em outras partes do leste do país. Na manhã de ontem, na cidade de Horlivka, a 32 quilômetros da capital regional, Donetsk, militantes tomaram conta da sede da prefeitura e de uma segunda delegacia de polícia. Em Donetsk, outros tomaram a sede da Receita e da Alfândega. Todas as ocupações seguem o mesmo modelo revolucionário: homens armados chegam para fazer o trabalho pesado; os locais são ocupados; são montadas barreiras de pneus e é lançado um chamado por um referendo. A Ucrânia ainda tem tanques e tropas em bolsões do leste do país. Mas a realidade é que a autoridade de Kiev desapareceu, provavelmente para sempre.

    Após semanas durante as quais não conseguiu definir o rumo dos acontecimentos, o presidente interino da Ucrânia, Oleksander Turchinov, ontem usou a linguagem da derrota. "Serei franco. Hoje as forças de segurança não são capazes de assumir o controle rapidamente da situação nas regiões de Donetsk e Lugansk", ele disse a governadores regionais. Turchinov disse que muitos militares e agentes de segurança ucranianos desertaram nas últimas semanas, entregando suas armas e unindo-se aos "terroristas".

    "Os órgãos de segurança... estão impossibilitados de cumprir seu dever de proteger os cidadãos. Estão impotentes nestas questões", ele admitiu. Turchinov disse ainda que, em vez de tentar reconquistar o controle de Lugansk e Donetsk, suas forças vão se concentrar na defesa das províncias de Kharkiv, no leste, e Odessa, no oeste. Será difícil. O plano do Kremlin parece ser fazer ressuscitar a região histórica da "Nova Rússia", uma grande parte do sul e leste da Ucrânia onde a população fala o idioma russo.

    Enquanto isso, na delegacia de polícia de Lugansk, Pogukay disse estar furiosa com Turchinov desde que ele descreveu os policiais do leste do país como traidores. "Primeiro, Viktor Yanukovych (o ex-presidente da Ucrânia) nos traiu. Agora Turchinov nos traiu", ela falou, com a voz tremendo de emoção. "Isso vai pesar sobre a consciência dele."

    Pogukay contou que o chefe regional de polícia, Vladimir Guslavsky, enviou sua renúncia a Kiev por fax na terça-feira, imediatamente antes de a milícia tentar tomar a delegacia. Não recebeu resposta. "Ele é um homem honrado. Vai permanecer no cargo até enviarem alguém para tomar seu lugar."

    Durante o ataque, os insurgentes conseguiram arrancar da parede da delegacia metade de um símbolo ucraniano do tridente. Eles hastearam uma bandeira russa no telhado; alguém a tirou de lá, mais tarde.

    Para prevenir outros ataques, a polícia empilhou sacos de areia na entrada e diante das janelas do térreo. Vasos de plantas eram visíveis em várias janelas dos andares superiores, e as luzes estavam acesas. Pogukay comentou que o vice-ministro do Interior da Ucrânia telefonou para manifestar seu apoio. Mas ninguém mais de Kiev se deu ao trabalho de fazer o mesmo.

    Então os policiais não têm saída? "Não somos traidores, como Turchinov", disse Pogukay. "Vamos resistir até o fim."

    Tradução de CLARA ALLAIN

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