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    Melhora nos padrões de vida complica debate sobre a pobreza nos EUA

    ANNIE LOWREY
    DO "NEW YORK TIMES", EM WASHINGTON

    06/05/2014 12h00

    Uma família com carro na garagem, TV de tela plana e um computador conectado à internet pode ser considerada pobre?

    Os norte-americanos - e mesmo alguns dos mais pobres entre eles - desfrutam de um nível de abundância material que seria impensável uma ou duas gerações atrás. Esse fato incontestável se tornou tema de amargo debate político este ano, meio século depois que o presidente Lyndon Johnson declarou guerra à pobreza.

    Um forte contraste nas visões sobre a pobreza e a desigualdade voltou a emergir na quarta-feira, quando os democratas do Senado não conseguiram reunir votos suficientes para garantir a maioria de 60% necessária a derrubar o bloqueio republicano a uma proposta que elevaria a renda dos trabalhadores norte-americanos mais pobres ao aumentar o salário mínimo federal para US$ 10,10 por hora.

    Os republicanos da Câmara dos Deputados, liderados pelo deputado Paul Ryan, de Wisconsin, convocaram uma série de audiências sobre a pobreza, uma das quais na quarta-feira, e em alguns casos argumentaram que os gastos anuais de centenas de bilhões de dólares do governo podem ter tornado a pobreza mais fácil ou confortável, mas na realidade pouco fizeram para limitar significativamente o seu alcance.

    Travis Dove - 16.mai.2014/The New York Times
    Emalee Short brinca com cão no quintal dos avós, em Hensley
    Emalee Short brinca com cão no quintal dos avós, em Hensley

    De fato, a despeito da melhora nos padrões de vida, a distância entre os pobres e a classe média e os ricos aumentou, tanto em termos de renda quanto de consumo. As mesmas tendências econômicas mundiais que ajudaram a derrubar os preços da maior parte dos bens limitaram os empregos industriais bem pagos que no passado estavam disponíveis para ampla gama de trabalhadores norte-americanos. E o custo de muitos serviços importantes para escapar da pobreza - entre os quais educação, saúde e serviços às crianças - dispararam.

    "Sem dúvida, os pobres estão em situação melhor hoje do que quando começou a guerra contra a pobreza", afirmou James Ziliak, diretor do Centro de Pesquisa da Pobreza da Universidade do Kentucky. "Mas também se afastaram mais das demais classes".

    Os democratas em geral argumentam que superar essa disparidade requer oferecer mais apoio aos pobres, com o aumento do salário mínimo, prolongamento dos benefícios-desemprego e redução dos custos de saúde por meio de uma ampliação do programa federal Medicaid e do subsídio de planos privados de saúde para as pessoas que não contam com cobertura oferecida por seus empregadores.

    Os republicanos, em contraste, propõem reduzir a regulamentação governamental e reformar os programas existentes a fim de encorajar mais trabalho, argumentando que isso permitiria que Washington reduzisse seus gastos com os pobres.

    "A questão não é determinar se o governo federal deve ajudar, mas sim determinar como", declarou Ryan na audiência da quarta-feira. "Como garantirmos que cada dólar do contribuinte que gastamos para reduzir a pobreza esteja de fato funcionando?"

    Para muitas famílias trabalhadoras pobres, a descrição mais adequada de suas finanças e estilo de vida seria a palavra "frágil". Mesmo que possam contar com salários a cada mês, manter as contas em dia requer muito malabarismo, e poupar é impossível.

    Tammie Hagen-Noey, 49, de Richmond, Virgínia, estava digitando em um iPhone na varanda da casa que divide com outras pessoas - o proprietário é um amigo de sua filha. Ela ganha US$ 7,25 por hora trabalhando em um McDonald's, e fatura um dinheirinho extra plantando pequenas hortas para vizinhos que querem manter jardins.

    Hagen-Noey está tentando reconstruir suas finanças, dizimadas pelo divórcio, cobranças governamentais de impostos e pelo vício. No topo de sua lista de prioridades está encontrar emprego que pague melhor. Ela mostrou um holerite que revela quanto faturou em salário até agora este ano: US$ 2.938,51.

    "É impossível", diz. "Cada centavo que ganho é gasto para cobrir necessidades". Alguns meses atrás, ela vendeu seu carro por US$ 500 para pagar o aluguel.

    Duas grandes tendências respondem por boa parte da mudança no consumo das famílias pobres na última geração: programas federais e a queda dos preços.

    Desde os anos 60, governos tanto democratas quanto republicanos vêm expandindo programas como a assistência alimentar federal e a restituição de impostos para as famílias pobres. Em 1967, os programas do governo reduziam um dos principais indicadores de pobreza em 1%. Em 2012, a redução que propiciavam chegava a 13%.

    Como resultado, as diferenças entre o que as famílias pobres e de classe média consomem no dia a dia são muito menores do que as diferenças naquilo que elas ganham.

    "Há muito mais assistência per capita às pessoas mais pobres do que jamais houve no passado", disse Robert Rector, pesquisador sênior da Heritage Foundation, uma instituição conservadora de pesquisa. "Isso sustenta os padrões de vida em nível considerável", ele afirma, citando estatísticas sobre habitação, nutrição e outras categorias.

    No entanto, as décadas de crescimento econômico não mostraram igual sucesso na elevação da renda de muitas famílias pobres, o que provocou fortes críticas conservadoras, este ano, ao fato de que apesar dos gastos de centenas de bilhões de dólares em programas de combate à pobreza, a dependência dos pobres com relação ao governo não foi diminuída.

    "Esse é o cerne do problema", apontou Rector. "Que progresso é esse?"

    Mas outra forma de progresso conduziu ao que alguns economistas definem como "efeito Wal-Mart": a queda dos preços de ampla gama de bens industrializados. Desde os anos 80, por exemplo, o preço real de um aparelho médio de televisão caiu em cerca de 90%, e os televisores atuais são mais nítidos, maiores, mais leves e muitas vezes dotados de conexão com a Internet.

    Da mesma forma, o preço efetivo das roupas, bicicletas, eletrodomésticos de pequeno porte e alimentos industrializados - virtualmente tudo que se produz em uma fábrica - vem seguindo trajetória de queda. O resultado é que os norte-americanos podem comprar muito mais coisas a preços de pechincha.

    Muitos serviços cruciais, no entanto, permanecem fora do alcance das famílias mais pobres. Os custos da saúde e de uma educação universitária dispararam. Hagen-Noey, por exemplo, não trata sua hepatite e outros problemas médicos porque não está qualificada para o Medicaid e não tem como pagar um plano de saúde ou tratamentos médicos.

    Cuidar das crianças também responde por apenas uma pequena fatia do consumo das famílias pobres, porque custa caro demais. Em muitos casos, isso reduz a renda das mulheres, que não têm escolha a não ser abrir mão de horas de trabalho para ficar em casa cuidando das crianças.

    "O custo anual médio de cuidar de uma criança pequena nos Estados Unidos é de entre US$ 6 mil e US$ 7 mil", diz Ziliak, da Universidade do Kentucky. "Se você contemplar a renda anual média de muitas mães solteiras, isso representa um quarto dela. É uma proporção imensa. Muita gente não tem como arcar com isso".

    No fim, argumentam muitos economistas centristas, as vidas dos pobres precisam ser contempladas à luz da riqueza e do progresso econômico do país como um todo.

    "Se você isolar serviços e bens nos quais houve dramático progresso tecnológico, então de fato os pobres podem consumi-los em 2014 quando nem os ricos podiam em 1954, o que dificilmente pode ser considerado como distinção significativa", diz Gary Burtless, economista da Brookings Institution. ""Isso não revela quem é rico e quem é pobre, não da maneira que Adam Smith e quase todos os estudiosos que se seguiram a ele pensam sobre pobreza".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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