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    Condenação à morte por Khomeini é 'história antiga', diz Salman Rushdie

    SYLVIA COLOMBO
    ENVIADA ESPECIAL A PORTO ALEGRE

    14/05/2014 02h00

    "Quando comecei a ler 'Cem Anos de Solidão', me diziam que eu não ia entender nada, porque não sou latino-americano e não conheço as coisas daqui. Mas, cada vez que venho, vejo mais coisas em comum entre a América Latina que inspirou García Márquez e o mundo de onde venho. Ambos lutam com a herança colonial, com uma grande influência da religião, com a multiplicidade das raças e vivem num ambiente em que as coisas parecem meio absurdas e há que responder de forma criativa."

    Assim começou sua palestra anteontem, no evento Fronteiras do Pensamento, o escritor anglo-indiano Salman Rushdie, 66, após caminhar pelos parques de Porto Alegre e comer carne. Nem aí para a fatwa [condenação à morte lançada contra ele pelo aiatolá Khomeini em 1989, por considerar blasfemo o livro "Os Versos Satânicos"], andou pelas ruas da capital gaúcha sem segurança e declarou não sentir medo.

    "Para mim soa como história antiga. Faz tanto tempo. Nem penso mais nisso. É preciso lembrar que, das duas partes em embate na ocasião, uma morreu [Khomeini], e eu sigo vivo. Isso basta."

    Em entrevista à Folha, algumas horas antes, Rushdie contou que está terminando seu próximo romance, o primeiro livro de ficção em seis anos. "Estive trabalhando tanto com a verdade ao escrever minha biografia ['Joseph Anton', Companhia das Letras], que agora queria fazer algo totalmente fictício."

    Ainda sem título e programada para o ano que vem, a obra usará antigas técnicas narrativas do Oriente para contar uma história que se passa nos EUA "no dia depois de amanhã". Rushdie diz que não quer estabelecer a trama no presente nem no passado, para que não se identifique com determinados presidentes ou fatos históricos.

    "As pessoas tendem a dar uma interpretação apenas política para minhas obras, e eu não queria que fosse assim desta vez", explica.

    A relação entre a política e a literatura foi o tema da palestra, que será apresentada hoje também em SP, no braço paulistano do Fronteiras do Pensamento (às 20h30, no Complexo Ohtake Cultural).

    A ideia é analisar por que, no século 19, era possível escrever sobre um fato pontual, algo que ocorria num pequeno vilarejo, sem necessariamente relacionar com o contexto político. "Hoje isso é impossível. O modo como a política afeta nossas vidas é muito mais forte, a esfera pública cresceu tanto que se impôs com uma força incrível na nossa vida pessoal."

    LATINOS E INDIANOS

    Fã da literatura latino-americana, Rushdie falou do argentino Jorge Luis Borges, do mexicano Juan Rulfo e do colombiano García Márquez. Disse que vê uma linha clara entre o brasileiro Machado de Assis e todos eles.

    "O que se chama 'boom' latino-americano [dos anos 60/70] estava aí muito antes, e ler Machado permite entender todos eles". Entre outros brasileiros, disse admirar Clarice Lispector e ter lido muito Jorge Amado. "Talvez tenha lido até demais –a qualidade dele era muito irregular. Mas o conheci uma vez em Londres e gostei muito de conversar com ele."

    Quando estava escrevendo "Os Versos Satânicos", Rushdie interrompeu o trabalho para ir à Nicarágua. O resultado foi o livro de não ficção "The Jaguar Smile" (1987).

    "Desde então fiquei com a sensação de que a América Latina, sempre convulsa como o meu lado do mundo, é o local onde o futuro vai acontecer. Há muito de preocupante ocorrendo, como na Venezuela, mas o período sombrio das ditaduras acabou".

    E lembrou de sua visita ao Chile, em 1995, quando o general Pinochet já não estava mais no poder, mas seguia sendo muito influente na política local. "A impressão de que aquele não era um lugar livre, que havia uma força negativa, era muito forte".

    Essa força negativa teria motivado, diz, um gênero original da região, as "novelas sobre ditadores", em que julga que a literatura cumpriu a função de explicar as trevas em que viviam esses países durante os anos de chumbo.

    "São muito bons 'O Outono do Patriarca' [García Márquez], 'Eu, o Supremo' [do paraguaio Roa Bastos] e 'O Recurso do Método', do [cubano] Alejo Carpentier."

    Rushdie se diz preocupado com a Índia, seu país natal, onde o resultado das eleições será conhecido provavelmente na próxima sexta.

    "Não há lado bom nessa eleição: os dois partidos estão corrompidos. O do Congresso [hoje no poder] é corrupto e merece essa impopularidade que as urnas estão mostrando. Já o BJP [oposicionista] não representa os 'bons moços'. Narendra Modi se vende hoje como de centro, mas na verdade é muito direitista."

    Alertou que as pesquisas no país não são boas e que o resultado pode ser diferente do que estão prevendo –uma vitória ampla do BJP. E acrescentou estar esperançoso mesmo em relação às próximas eleições. "Uma terceira força surgiu há pouco, o AAP. São progressistas, têm ideias novas. É uma saída. Não tiveram tempo de se estruturar para concorrer agora, mas terão para a eleição seguinte."

    Sobre o Irã, Rushdie diz que vê uma saída nas conversas sobre a questão nuclear e que uma intervenção norte-americana seria uma tragédia. "Trata-se de uma sociedade muito sofisticada e educada, vivendo sob uma ditadura que enfrenta muita resistência. A questão é que há apenas uma coisa que uniria os iranianos a favor do governo, e isso seria a intervenção norte-americana. Ou seja, o resultado seria terrível."

    Para o escritor, a comunidade internacional deveria discutir as intervenções militares, pois em alguns casos elas seriam defensáveis.

    Quando os EUA atacaram o Afeganistão, após os atentados de 11 de setembro de 2001, Rushdie foi a favor. "Pela primeira vez na história uma organização terrorista tinha tomado um Estado e estava atacando os EUA. Era uma situação aterradora! Se eu fosse o presidente norte-americano, faria o mesmo."

    Também esteve a favor do bombardeio à Sérvia durante a guerra do Kosovo, em 1999, o que levou a intelectualidade de esquerda a posicionar-se contra ele.

    Já a ocupação do Iraque, em 2003, Rushdie considera que foi equivocada. "Não tinham encontrado o inimigo certo, então atacaram o que havia no lugar. As armas de destruição em massa eram uma mentira."

    Ainda assim, considera que os críticos da ocupação posicionados à esquerda também se equivocaram. "Saddam Hussein era um ditador terrível e, se a esquerda não for contra derrubar ditadores, para que serve, então?"

    E acrescenta que é um dever de jornalistas, escritores e políticos pressionar por um debate internacional sobre as intervenções, uma vez que as Nações Unidas seriam fracas do ponto de vista intelectual.

    "Há um monte de ditadores pelo mundo, e eles deveriam cair. Mas será que todos com intervenções militares? Não sei. O que se deveria fazer com a Coreia do Norte? Não tenho isso claro. Deveria haver outro modo –temos que buscar qual é."

    Confortável em Nova York, o escritor se diz contaminado pela "ética do trabalho" da cidade. "Todos falam da energia, mas o que mais me motiva é que todo mundo trabalha muito, e você não pode ficar parado." Apesar de alguns outros escritores britânicos estarem se mudando para o Brooklyn, como o amigo Martin Amis, ele prefere morar no meio da ilha.

    "Viemos pelas mesmas razões, para ver o que acontecia na América. Mas prefiro Manhattan. Vivi em Bombaim [Mumbai] e Londres, gosto de lugar agitado, onde posso ir ao teatro atravessando a rua. Não quero uma vizinhança tranquila, com gente empurrando carrinhos de bebê."

    JOGO DURO

    Em uma visita ao Brasil há alguns anos, Rushdie foi a um jogo do Botafogo no Maracanã. É fã de futebol: torce para o Tottenham, do Reino Unido, e gosta do estilo do ex-corintiano Paulinho.

    Em 2006, na Copa da Alemanha, assistiu a Brasil x Croácia com uma camiseta da seleção brasileira presenteada pelo editor Luiz Schwarcz (Companhia das Letras), também presente. "E o Brasil quase perdeu. A Croácia [com quem o Brasil joga novamente agora, na abertura da Copa] é um time duro."

    Ainda assim, diz que não gostaria de estar aqui durante o campeonato, pois viu o país muito mal estruturado para receber estrangeiros.

    Contou que, na escala que fez em São Paulo, teve de enfrentar uma fila interminável e lenta para a conexão até Porto Alegre. Diante dele, havia na fila um outro indiano, que comentou: "Neste aeroporto me sinto em casa. É como na Índia. Nada funciona e ninguém se importa."

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