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    Minha história: Militar brasileiro conta drama após o terremoto no Haiti

    DEPOIMENTO A
    RENATO MACHADO
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, NO HAITI

    31/05/2014 02h00

    O sargento do Exército brasileiro chegou ao Haiti em 2004 e participou das primeiras missões de pacificação na capital. Ao retornar, em 2009, e notar uma considerável melhora nas condições do país, presenciou o devastador terremoto do ano seguinte, a poucos dias do fim de sua missão. "Não queria que aquelas fossem as últimas imagens que guardaria do Haiti e por isso decidi voltar", conta.

    *

    Minha carreira no Exército começou há 26 anos. Sou motorista dos blindados Urutus, uma atividade especializada dentro das Forças Armadas.

    Como não somos muitos, tive mais oportunidades de vir ao Haiti. Essa é minha terceira missão, cada uma diferente da outra.

    Cheguei pela primeira vez a Porto Príncipe no fim de 2004. O Haiti era muito marcado pela violência das gangues. Deixamos as bolsas na base e saímos para um reconhecimento em Bel Air, no centro da capital, onde vi um corpo jogado em uma pilha de lixo. Senti um pouco do que era a realidade local.

    Fomos designados dias depois para participar da Operação Liberté. Seria a primeira grande ação em Cité Soleil, o lugar mais perigoso do país.

    Um detalhe é que os veículos não tinham a cabine blindada para proteger o motorista, como hoje. Ou você ia com o corpo para fora ou com a escotilha fechada, o que reduzia o campo de visão.

    Nossa missão era avançar para o coração de Cité Soleil, dando proteção para outra unidade que viria atrás. Eu escutava os tiros zunindo por todos os lados, batendo na blindagem. No final, tudo saiu como planejado.

    Logo no dia seguinte participamos da desocupação da casa do ex-presidente Aristide, invadida por ex-militares haitianos que exigiam a reinstalação das Forças Armadas.

    Renato Machado/Folhapress
    O sargento João de Melo Longuini, da Minustah, em frente a dois blindados Urutu do Exército
    O sargento João de Melo Longuini, da Minustah, em frente a dois blindados Urutu do Exército

    Foram três dias de cerco. Meu blindado ficou parado na rua ao lado da casa, até que invadimos e eles se renderam. O restante da nossa atuação foi em Bel Air, onde fizemos operações e trocamos tiros. Isso seguiu até nossa partida, em maio de 2005.

    Quando retornei, em 2009, a situação era muito diferente. Bel Air e Cité Soleil estavam pacificadas. Minha atividade diária variava entre fazer patrulhas, dar serviço na base e fazer a guarda do presídio. Os blindados Urutus já não circulavam durante o dia, porque não havia graves problemas de segurança e porque atrapalhavam o trânsito.

    Faltavam quatro dias para ir embora, mas tudo mudou naquele 12 de janeiro de 2010. Eu estava correndo no final da tarde quando senti os tremores. O chão me jogava de um lado para o outro. Quando parou, vimos uma grande poeira cinza levantar e ouvimos gritos.

    Rapidamente as tarefas foram distribuídas. Tínhamos perdido a comunicação por rádio e então um oficial do batalhão decidiu visitar as bases brasileiras para ver a situação. Ele precisava de um motorista e me voluntariei.

    Fomos em uma viatura e não de blidado. Vi de perto toda a destruição que aquela tragédia provocou. Os haitianos estavam cobertos de poeira e andavam desorientados pelas ruas.

    DESTRUIÇÃO

    A primeira base em Cité Soleil estava inteira. Bateu um aperto forte quando chegamos na seguinte, a Casa Azul [base brasileira], que havia ruído. Foi doloroso saber que embaixo dos destroços estavam militares como eu.

    Seguimos para o Forte Nacional, passando pela região central, onde ruas estavam intransitáveis por causa dos escombros. Haitianos pediam ajuda no trajeto e colocamos alguns casos mais graves na traseira da viatura. A situação que mais me marcou foi uma menina coberta de sangue, mais ou menos da idade da minha filha na época.

    O pai da menina veio falar comigo, mas eu não o entendia. Apenas retirei a bandeira do Brasil da minha farda e dei pra ele. Não sei por que fiz isso. Mas ele entendeu que significava que não iríamos abandoná-los.

    Voltamos à base de madrugada. Deixamos os feridos na entrada, onde médicos do batalhão prestavam os primeiros socorros. Dormi umas poucas horas. No dia seguinte, começaram uma série de ações humanitárias, distribuição de alimentos e medicamentos, que eu atuava fazendo a segurança. Isso se repetiu por mais 20 dias, quando fomos embora.

    Não queria que aquelas fossem as últimas imagens que guardaria do Haiti e por isso decidi voltar. Estou encerrando agora minha terceira missão. Fico feliz por deixar um país em situação melhor, embora os desafios ainda sejam muitos.

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