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    Europa cria acervo para lembrar Primeira Guerra

    RODRIGO VIZEU
    EDITOR-ASSISTENTE DE "MUNDO"

    29/06/2014 02h00

    Quando era pequeno, o alemão Markus Geiler, 46, sempre ouvia que só existia graças à Bíblia. No caso, um exemplar específico, atravessado por um estilhaço de obus e que salvou seu avô na Primeira Guerra Mundial.

    A guerra eclodiu há cem anos, quando o herdeiro do trono austro-húngaro, Francisco Ferdinando, foi morto por um nacionalista sérvio, levando à escalada que envolveu a Europa e o mundo.

    Aos 23 anos, o avô de Markus, o soldado alemão Kurt Geiler, lutava em Verdun (França), uma das batalhas mais mortíferas do conflito. Dormia, usando a Bíblia como travesseiro, quando os franceses jogaram o explosivo dentro do abrigo alemão. Todos morreram, exceto Geiler.

    "Essa Bíblia é um memorial antiguerra, mostra como ela é cruel e sem sentido", conta o neto do soldado.

    Markus tornou a história conhecida por meio de um projeto da fundação holandesa Europeana, ligada à União Europeia, que roda o continente para catalogar e fotografar objetos e documentos da época da guerra.

    A ideia é tornar público e de fácil acesso um material que se manteve restrito às famílias por cem anos.

    A entidade já digitalizou mais de 125 mil itens privados, além de reunir outros 400 mil antes espalhados em bibliotecas, centros culturais e arquivos audiovisuais.

    Em outubro, o site com todos esses documentos (http://europeana1914-1918.eu), hoje em inglês e outras dez línguas, estará em português, marcando a campanha de coleta em Portugal. Uma coleta no Rio de Janeiro está planejada para março de 2015, em parceria com o arquivo da cidade.

    Uma descoberta de grande repercussão, via doação anônima, foi um cartão postal enviado em 1916 pelo então cabo do Exército alemão e futuro ditador Adolf Hitler.

    Após ter sido ferido em combate na França, Hitler foi para Munique, na Alemanha, e de lá enviou o postal a um amigo de trincheiras, Karl Lanzhammer.

    Aquele que seria o pivô da Segunda Guerra Mundial diz estar sob tratamento dentário e demonstra ansiedade para voltar a combater na Primeira: "Vou me apresentar como voluntário para o front imediatamente".

    BRASIL

    Apesar da participação marginal do Brasil na Grande Guerra, duas histórias trágicas recolhidas pela Europeana têm ligação com o país.

    O jovem italiano Ernesto Pascotto emigrara com a família para o Brasil e decidiu visitar a terra natal em 1915.

    Ao chegar lá, a Itália entrou na guerra ao lado da França e do Reino Unido. Pascotto acabou obrigado a se alistar e enviado para um campo de treinamento.

    Nas cartas divulgadas por um parente, o soldado reclama de ser obrigado a lutar e diz esperar que a guerra acabe antes que ele esteja pronto para o combate.

    No entanto, o desejo não se cumpriu. Pascotto acabou morto em combate em dezembro do mesmo ano em que foi alistado.

    Outra história com final triste é a dos Davroux, uma família francesa que vivia em São Paulo e decidiu voltar quando a guerra eclodiu porque o pai, Jacques, se achava no dever de defender a pátria, contra os conselhos dos parentes que haviam permanecido na França.

    Ele embarcou num navio com a mulher, Marthe, e os dois filhos. A bordo, conviveram civilizadamente com alemães que viajavam com o mesmo propósito.

    Já no front, em março de 1915, Davroux relata a falta de avanços militares, típica da guerra de trincheiras, e reclama da proibição de ir ao funeral da mãe e do desinteresse de seus superiores em fornecer roupas e equipamentos para as tropas, o que o obrigava a usar um uniforme de bombeiro parisiense.

    Quatro meses depois, ao atacar com seu pelotão uma bem armada trincheira alemã, Davroux, que chegara a oficial, foi baleado na barriga, morrendo na hora.

    Em uma carta de caligrafia torta e tremida, diferente de suas demais, a recém-viúva Marthe relata a morte.

    "Não posso imaginar infelicidade igual. Parece que ele ainda está ao meu lado, meu desafortunado Jacques! Nunca me recuperarei de tamanha dor."

    A última carta digitalizada é de 1921. Seis anos após a morte, o corpo do militar, enfim, foi transferido do cemitério do front para Paris.

    Marthe, que nunca se casaria novamente, afirma: "Eu esperava incessantemente o corpo de meu pobre Jacques".

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