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    Governo argentino deve tentar se beneficiar do caso Carlotto, diz escritor

    SYLVIA COLOMBO
    DE SÃO PAULO

    08/08/2014 02h00

    A política de direitos humanos das gestões Néstor (2003/07) e Cristina Kirchner teve seu mais importante resultado nesta semana com o encontro de Guido, o neto da líder da associação Avós da Praça de Maio [dedicada a encontrar filhos de guerrilheiros mortos pelos militares], Estela de Carlotto.

    Para o historiador argentino Federico Finchelstein, porém, os Kirchner não podem ser apresentados como únicos responsáveis pela Justiça com relação aos crimes da última ditadura argentina [1976-1983].

    "As reparações começaram já nos anos 80, durante o governo de Raúl Alfonsín [1983/89], com a Conadep [Comissão Nacional de Desaparecidos] e o Julgamento das Juntas. As políticas de memória do kirchnerismo ofereceram um aporte muito importante, mas enfatizaram a ideia de que os anos 70 foram um embate entre heróis e vilões".

    Finchelstein, que está lançando "The Ideological Origins of the Dirty War" [as origens ideológicas da Guerra Suja], um ensaio sobre a genealogia da violência na cultura política argentina, diz que a reparação dos crimes da repressão é uma história de "continuidades e rupturas".

    Logo após a redemocratização, houve um extenso julgamento em que se condenaram militares e guerrilheiros. Logo vieram as leis de Ponto Final [1986] e Obediência Devida [1987], revertendo sentenças de militares.

    Já na década de 90, dentro da política de reconciliação nacional de Carlos Menem [1989-1999], foram concedidos indultos.

    Os Kirchner anularam essas leis, e iniciaram um amplo processo de julgamento e condenação dos militares, ao mesmo tempo em que cooptavam o apoio político das associações de defesa de vítimas.

    "Houve uma desinstitucionalização da política de direitos humanos, que passou a ser uma política de partido."

    A chefe das Mães da Praça de Maio, Hebe de Bonafini, hoje com 85 anos, é a mais engajada propagandista de Cristina Kirchner. Já Estela de Carlotto, apesar de ser também alinhada, tem um perfil mais crítico e moderado, e por isso é mais popular entre os argentinos. Nem por isso, Carlotto deixa de ir à maioria de atos pró-Cristina.

    "O fato de o neto ter sido encontrado é uma linda notícia, mas certamente é possível que o governo tente tirar crédito político disso. Espero que não se transforme em instrumento de propaganda", conclui.

    A popularidade do governo vem se desgastando nos últimos meses devido à crise econômica -alta inflação (cerca de 30%) e o anúncio do ´default´. No ano que vem, ocorrem novas eleições presidenciais. Cristina não poderá candidatar-se, mas é bastante provável que o kirchnerismo apresente um candidato próprio.

    FASCISMO E RELIGIÃO

    Em seu mais recente livro, Finchelstein explica porque uma sociedade que em sua essência histórica é secular deu espaço para o fortalecimento de um ideário nacionalista afinado com o fascismo europeu e de cunho extremamente religioso.

    No fim do século 19, havia predominado a visão de pensadores liberais que defendiam a laicidade do Estado. A obra mostra, porém, que nas primeiras décadas do século 20 cresceu a influência da Igreja dentro do poder político. O momento-chave é o golpe que coloca no poder o general José Félix Uriburu (1868-1932). Sequestros, prisões, mortes de anarquistas e a criação de uma milícia de direita, a Legião Cívica, são os instrumentos dessa liderança que tenciona "sequestrar o Estado para detonar uma revolução nacional-socialista de cunho religioso".

    Ao longo do tempo esse pensamento evoluiu de acordo com a chegada de novos personagens, como no caso do general Juan Domingo Perón (1895-1974), cujo primeiro mandato, iniciado nos anos 40, teve forte inspiração do fascismo de Benito Mussolini (1883-1945).

    "O peronismo é chave para entender o populismo argentino, e de certo modo o latino-americano. Neles predomina a ideia de que ´república´ é mais importante que ´democracia´, e de que o governo deve ampliar os direitos sociais, mas para isso pode limitar a participação política."

    O livro desemboca na ditadura argentina mais recente, a dos anos 70. Nela, os generais da Junta Militar teriam incorporado a ideia de que eram soldados de uma revolução religiosa, para salvar a Argentina de um "inimigo interno".

    Em entrevista concedida poucos meses antes de morrer, o general Jorge Rafael Videla (1925-2013) pela primeira vez falou do assassinato dos guerrilheiros, afirmando que era algo necessário para extirpar a ameaça à Argentina como nação católica.

    Nesta mesma entrevista, Videla pela primeira vez admitiu que o roubo de bebês das mães guerrilheiras fora realizado de forma sistemática. Como consequência da política de direitos humanos do governo Kirchner, Videla morreu na cadeia, cumprindo uma pena de prisão perpétua por crimes de lesa-humanidade.

    Para Finchelstein, as duas correntes, nacionalista/religiosa e a secular/progressista ainda convivem na Argentina.

    Essa é a razão para que o racismo e a xenofobia estejam presentes, o que pode ser visto tanto nos gritos de guerra dos estádios de futebol como no reclamo pelas ilhas Malvinas, mas também há espaço significativo para avanços em políticas de direitos civis, como o matrimônio gay e a morte digna, que colocam a Argentina numa vanguarda na América Latina.

    THE IDEOLOGICAL ORIGINS OF THE DIRTY WAR

    AUTOR Federico Finchelstein

    EDITORA Oxford University Press (importado)

    QUANTO US$ 55 (232 págs.)

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