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    Opinião: tentativa de salvar minorias no Iraque expõe hipocrisia ocidental

    CARNE ROSS
    DO "GUARDIAN"

    12/08/2014 12h26

    Um amigo que vive em Pristina me disse certa vez que o dia mais feliz de sua vida foi aquele em que ouviu mísseis de cruzeiro da Organização para o Tratado do Atlântico Norte (Otan) voando sobre sua cidade. Foi em 1999, quando a Otan interveio, do ar, a fim de deter a campanha sérvia para expulsar os albaneses de Kosovo.

    Intervenções militares muitas vezes são erradas, mas em algumas ocasiões é certo fazê-las. Foi certo intervir em Kosovo, na Líbia em 2011, e de novo agora, no norte do Iraque.

    Renunciei ao meu cargo na Secretaria do Exterior britânica porque meu governo mentiu sobre os motivos para a invasão do Iraque em 2003. Meu ceticismo quanto às motivações ocidentais continua profundo. Mas o evidente sofrimento dos yazidis e outros, e a ameaça iminente à região do Curdistão, até o momento estável, sobrepujam essas dúvidas.

    As opiniões dos yazidis e do governo regional do Curdistão são claras. E são essas opiniões que mais importam. Mas a intervenção no norte do Iraque expõe a hipocrisia que caracteriza as políticas ocidentais no Oriente Médio. Quem merece e quem não merece ser salvo?

    No Egito, o Ocidente apoia uma ditadura autoritária sob a qual milhares de pessoas, de membros da Irmandade Muçulmana a democratas laicos como Alaa Abd El Fattah, estão encarcerados em prisões hediondas e brutais.

    E no Iraque mesmo, os Estados Unidos escolheram o agora ameaçado Nouri al-Maliki como primeiro-ministro e continuam a apoiá-lo mesmo depois que suas milícias atacaram os sunitas e aprisionaram milhares de pessoas em função de suas origens étnicas. O governo do Reino Unido oferece apoio tácito a tudo isso, com uma exibição calculada de preocupação retórica.

    O Ocidente se colocou em uma situação de grotesca incompetência no Oriente Médio, apoiando ditaduras em alguns lugares e pedindo por seu fim em outros; condenando matanças de civis em alguns lugares e as acatando em outros. Essa duplicidade será explorada por extremistas de todo o mundo, servindo de fonte a um terrorismo que continuará a nos assombrar.

    Por tempo demais, a política ocidental vem sendo orientada por conceitos abstratos e inventados de "interesses" e "segurança", diretrizes arbitrárias que decaíram, já há muito tempo, a distinções entre "nossos amigos" e "os inimigos deles".

    Uma nova doutrina é necessária, baseada em princípios claros: proteção aos civis, promoção de soluções locais, recompensas e punições coerentes - tudo isso como parte de uma abordagem abrangente.

    Como em qualquer outro lugar, o bem-estar dos civis vem em primeiro lugar e orienta todas as políticas. Isso oferece um marco claro quanto ao Curdistão mas também quanto à Palestina, Arábia Saudita e Bahrein. Em casos de repressão violenta, significa propiciar às populações meios de autodefesa. Em situações de último recurso, pode significar intervenção militar.

    Desde que Sykes e Picot dividiram o Oriente Médio[entre britânicos e franceses] um século atrás, o Ocidente tem imposto seus ideais simplistas às complexidades da região. Deveria, em lugar disso, facilitar a discussão local, sem presumir coisas como a necessidade de que o Iraque se mantenha como país unificado.

    Se os curdos desejam um Estado próprio, não deveríamos ser os responsáveis por impedi-los. Nosso papel deveria ser o de buscar uma solução negociada, com claras proteções às minorias.

    Quando John Kerry visita o Egito levando helicópteros de ataque como presente ao presidente Sisi, não deveria ser surpresa que o regime não preste atenção quando ele apela pela libertação de prisioneiros políticos. A retórica conta para muito pouco.

    Críticas ao bombardeio de escolas da ONU em Gaza não importam quando as autoridades, nos bastidores, garantem a Israel que o apoio continua.

    Se um governo abusa de sua população ou não promove diálogo político inclusivo, deve ser criticado, e em seguida condenado, rejeitado e, se a situação persistir, sancionado. Isso se aplica à Arábia Saudita; deveria se aplicar ao Iraque, mas também a Israel.

    A política ocidental não une os pontos entre as crises interconectadas do Oriente Médio. Proteger os civis na Síria significa dar meios de autodefesa, tais como mísseis antiaéreos, à oposição moderada (que minha organização assessora). Isso teria limitado a ascensão do Isis na Síria, impedindo a ameaça ao Iraque e evitando a necessidade de intervenção militar.

    Atacar o Isis no Iraque não impedirá que o perigo ressurja na Síria. Acatar a repressão no Egito sustentará a ameaça terrorista em todo o mundo. Esses princípios demonstram o quanto a política ocidental é confusa, hoje. Segui-los ajudaria a corrigir as coisas, em longo prazo.

    CARNE ROSS foi diplomata no Oriente Médio e renunciou ao seu posto na Secretaria do Exterior britânica em 2004. Ele agora comanda o Independent Diplomat, um grupo de consultoria sem fins lucrativos.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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