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    Opinião: Paz pode ser a verdadeira ameaça para Hamas e líderes de Israel

    AMY WILENZ
    DA REUTERS

    20/08/2014 12h35

    É hora de se perguntar se Israel e Palestina serão capazes algum dia de sair do abismo moral em que mergulharam e encarar a ameaça da paz.

    "Ameaça" é o termo correto. Porque a paz é perigosa para os líderes do Oriente Médio.

    Ela sempre o foi. Mas no início dos anos 1990 o então presidente da Organização para a Libertação da Palestina, Iasser Arafat, e o primeiro-ministro israelense, Itzhak Rabin, cada um dos quais odiava tudo o que o outro representava, sabiam que um e outro tinham suas razões para trabalhar pela paz.

    Era possível, imaginavam, que a paz fosse melhor que a guerra para as gerações futuras. Com certeza não provocaria tanto desperdício quanto a guerra.

    Aqueles não foram tempos de pura alegria, mas pelo menos a paz era plausível.

    A verdade trágica é que hoje as posições se endureceram. Os governantes de hoje, singularmente reativos e destituídos de imaginação, não são recipientes vazios que anseiam ser preenchidos pela poção da paz.

    Tanto Rabin quanto Arafat descobriram do modo brutal que trabalhar pela paz é um negócio perigoso, de alto risco.

    Depois destes últimos dez anos, será que os dois lados algum dia terão coragem suficiente para superar sua história mútua e tortuosa, aproximando suas cadeiras precárias da mesa da paz?

    Não pretendo sugerir que a culpa pela turbulência e o sangue derramado nos últimos dez anos seja dividida igualmente entre as duas partes.

    O comportamento do Hamas pode ser vil e irresponsável, mas Israel ocupou a faixa de Gaza ao mesmo tempo em que a abandonou, e seu bombardeio indiscriminado de populações civis em um lugar que mantém como prisioneiro é imperdoável.

    No entanto, mesmo as partes em guerra precisam avançar do assassinato mútuo para uma paz duradoura em que "gramados" não sejam "aparados" (a cínica metáfora usada por Israel para descrever seu bombardeio repetido de Gaza), soldados não sejam sequestrados, adolescentes não sejam executados, bairros não sejam arrasados e meninos não sejam bombardeados enquanto brincam.

    É difícil chegar lá porque, com paz em Israel, a população provavelmente ficará mais irrequieta, mais preocupada com os problemas internos refratários que o governo precisa encarar. A paz significa individualismo e batalhas políticas arduamente travadas. A guerra significa pensamento coletivo -ou seja, apoio reflexivo aos militares e ao primeiro-ministro que trava a guerra.

    Na Palestina (podemos chamá-la de faixa de Gaza, por enquanto), a paz significaria o desafio de buscar maneiras de administrar uma nação, de criar uma economia, de descobrir como levar uma vida familiar normal. A paz faria a atenção pública se desviar do ódio por Israel e do pensamento coletivo. A guerra, por outro lado, impede as pessoas de pensar se seus líderes lhes serviram bem ou mal.

    Sobretudo, porém, a paz é para os moderados -e as lideranças de Israel e da faixa de Gaza desprezam a moderação. Elas desprezam o entendimento, o aperto de mãos. Rejeitam tudo o que conduz à paz, incluindo as negociações. Só podem ser conduzidas à mesa do cessar-fogo pelas mãos de partes externas.

    A guerra é mais simples para elas, mais fácil. De fato, às vezes parece que o ódio por Israel não passa de uma ferramenta da política palestina interna e que o desprezo pelo Hamas não passa de um elemento esperado nas eleições israelenses, um elemento chave na plataforma política.

    A guerra é um componente básico no mito da criação israelense. Do mesmo modo, as intifadas fazem parte da identidade palestina. Trave uma guerra, promova uma intifada, e todas as pessoas de seu lado o seguirão.

    O primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu, por exemplo, é muito mais popular hoje do que era antes de começar esta rodada mais recente de mortes.

    E quase todo o mundo em Gaza sabe que o prolongado bloqueio do território por Israel, somado aos bombardeios israelenses esporádicos, empurraram seus moradores ainda mais fundo nos braços do Hamas. Pelo menos três gerações de palestinos agora já foram criados no clima da resistência. Assim, a Margem Protetora, o nome desta operação israelense mais recente em Gaza, reforçou o status dos militantes. Se houvesse uma eleição amanhã, o Hamas a venceria por aclamação popular.

    O ponto de vista de cada lado é bastante bem compreendido. Israel, como sempre, sente que trava uma guerra existencial e aponta para os novos túneis e os mísseis de mais longo alcance do Hamas como boas razões para justificar o mau comportamento israelense. O Hamas, compreensivelmente, aponta para o encarceramento e a lento processo de redução da população de Gaza ao estado de inanição como razão pela qual continua a disparar foguetes contra Israel, mesmo que não exerçam efeito.

    O caso inteiro da faixa de Gaza é uma repetição patológica do relacionamento disfuncional entre essas duas populações. As duas se enxergam como vítimas, ao mesmo tempo em que disparam foguetes que matam famílias inteiras ou que se pretende que matem famílias inteiras. Qualquer psicanalista lhe diria que esses dois lados precisam mudar de comportamento.

    Mas os líderes dos dois lados não enxergam as coisas assim. Como irmãos numa relação doentia, cada lado precisa do outro para definir sua própria identidade. Israel hoje praticamente não tem sentido sem a ameaça palestina. Quanto aos palestinos -sem a opressão israelense contra a qual resistir, quem são eles, neste momento?

    Mesmo assim, a entidade mais enfraquecida pelo conflito recente é Israel. O país é como um irmão mais velho enfurecido. Ele continua a bater e bater, sem se dar conta que seu irmãozinho ficou mais ágil, mais esperto, mais hábil, e que agora conta com novos amigos.

    Enquanto os israelenses novamente se valem do clichê do poderio aéreo excessivo, que tanto satisfez o ego machista, para lidar com o inimigo, os palestinos hoje possuem hardware e infraestrutura de resistência melhores. E também ficaram mais hábeis em ocultar seus movimentos da inteligência israelense.

    Hoje o Hamas é capaz de resistir por mais tempo, obrigando a partida a ser prorrogada. Enquanto o Hamas continua a lutar, mais palestinos morrem nos bombardeios israelenses e mais membros da comunidade internacional aderem ao lado palestino. É uma estratégia brilhante: combater, morrer, e, ao perder, vencer.

    O Hamas carrega alguma responsabilidade pelas vítimas civis de seu lado durante esta rodada do conflito -mas não existe melhor lugar para esconder sua própria vergonha moral que atrás dos corpos de seu próprio povo. A repulsa internacional diante da matança de civis inocentes às vezes pode sustar um poder de fogo superior.

    Hoje é antiquado até mesmo mencionar o processo de paz de Oslo, mas ele merece ser considerado. Qual era a ideia por trás da paz, no que dizia respeito a Israel?

    A razão de se buscar a paz era que a normalização dos palestinos os traria para a seara das nações respeitáveis, com responsabilidades outras que não apenas a resistência e a militância.

    Mas essa paz caiu por terra de modo dramático quando extremistas de ambos os lados destruíram seus próprios moderados. A segunda intifada começou; o Hamas assumiu o controle da faixa de Gaza; a Fatah, a organização de Arafat que buscava a paz, foi marginalizada, e Israel fechou os acessos à faixa de Gaza e bombardeou seu aeroporto. Um Israel militante "desnormalizou" a população da faixa de Gaza e garantiu que ela permanecesse radical em seu ódio por Israel. O que mais há para se fazer em uma população onde 70% a 80% estão desempregados?

    Durante esta batalha mais recente, M.J. Rosenberg, observador do Oriente Médio que escreve sobre o conflito israelo-palestino há décadas, focando principalmente Israel, decidiu parar de fazê-lo. "Para falar em termos simples, prefiro não mais escrever sobre Israel", ele explicou. "Prefiro nem sequer pensar sobre Israel. Especialmente porque deixei de nutrir qualquer esperança para seu futuro."

    Pode ser errado ir tão longe assim. Mas o extremismo da liderança de Israel nos oferece muito poucas razões para esperar uma mudança significativa do status quo repulsivo no futuro previsível.

    AMY WILENZ foi correspondente em Jerusalém da "New Yorker". As opiniões expressas são dela.

    Tradução de CLARA ALLAIN

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