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    Análise: Ocidente dá passo arriscado ao aumentar envolvimento na crise ucraniana

    IGOR GIELOW
    DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

    01/09/2014 16h46

    Ao anunciar a criação de uma força de reação rápida para uso em países-membros do Leste Europeu, a Otan (aliança militar ocidental) dá um perigoso passo na queda de braço que disputa com a Rússia desde o começo da crise ucraniana.

    No Kremlin, tal movimento é visto como uma agressão e um reforço à narrativa de que o Ocidente visa prejudicar os interesses russos.

    Não é um delírio nacionalista: desde o fim da União Soviética em 1991, o foco da Otan foi em sua expansão a leste, incorporando antigos membros da aliança militar comandada pelos russos, o Pacto de Varsóvia.

    Foram feitas concessões apaziguadoras aqui e ali, como intercâmbios entre militares russos e ocidentais. Mas a fraqueza estratégica de Moscou no confusos anos 90, após a dissolução da União Soviética, animou os planejadores ocidentais.

    A ascensão de Vladimir Putin ao poder no ano 2000 começou a mudar isso. Colocando a casa em ordem aos poucos na área militar e pagando a conta com as receitas de hidrocarbonetos, Putin assumiu o discurso de retomada do peso geopolítico de seu país.

    A Otan, contudo, manteve seu ímpeto e declarou abertamente, em 2008, que via Geórgia e Ucrânia como futuros membros. A leitura de um mapa explica por que Putin se sente encurralado.

    Antes disso, o Ocidente foi acusado de fomentar as "revoluções coloridas" (Rosa na Geórgia, Laranja na Ucrânia) por meio de fundações pró-democracia nos vizinhos dos russos. Se há alguma paranoia, por certo as ONGs canalizaram recursos para políticos e instituições pró-Ocidente naqueles países.

    Com a curta guerra na qual estabeleceu encraves russos "de facto" na pequena Geórgia em agosto de 2008, Putin mostrou o grau de dificuldade da estratégia de EUA, União Europeia e Otan. Enterrou as pretensões ocidentais do governo de Tbilisi rachando geograficamente o país, e provou-se certo na leitura de que o Ocidente não arriscaria uma guerra aberta contra Moscou.

    Como lembrou na semana passada o próprio presidente russo, não parece sábio meter-se com uma potência nuclear -um dos dois países do mundo que pode decretar o fim da civilização com o aperto de botões, sendo que o outro é justamente os EUA.

    A disputa deslocou-se mais para o campo econômico e para a Ucrânia, um país de porte médio espremido entre o colosso eurasiano e a Europa não apenas no sentido geográfico. Boa parte do país é pró-Europa, e uma fatia significativa, em favor de Moscou.

    O presidente deposto no começo do ano, Victor Yanukovich, caiu porque escolheu o lado do Kremlin e rejeitou um tratado econômico com a União Europeia. A violenta crise que precedeu sua derrubada sinalizou a Moscou que o Ocidente estaria perto de ganhar a disputa pela Ucrânia, e isso estrategicamente é inaceitável aos russos.

    Resultado: rapidamente a península de maioria étnica russa da Crimeia foi anexada. Não faria sentido para Putin arriscar perder a única saída para o Mediterrâneo da Marinha russa, baseada na região.

    Putin evitou apoio aberto inicial às pretensões separatistas das outras regiões com maioria russa em solo ucraniano. Jogou com o tempo, dando apoio tácito, mas recusando uma intervenção militar direta -até porque ela seria custosa e de eficácia duvidosa.

    O novo governo em Kiev, por sua vez, intensificou seu movimento pró-Ocidente ao ver o reforço das posições separatistas na região de Donetsk. Ele não pode dar-se ao luxo de perder o controle de áreas que compõem parte vital da economia ucraniana; o país já amarga recessão.

    O resultado do conflito é conhecido: o bombardeamento de cidades, a derrubada do Boeing-777 da Malaysia Airlines (embora quem tenha apertado o botão da bateria antiaérea siga obscuro) e a escalada da presença russa.

    Hoje ocorre uma virtual guerra entre Rússia e Ucrânia nas áreas separatistas. O Ocidente, ao promover sanções econômicas contra Moscou e dar dinheiro a Kiev, e ao anunciar reforço militar perto das fronteiras russas, traz o conflito mais perto de si.

    É uma jogada de risco, ao esperar para ver quem irá piscar primeiro. No passado, Putin dobrou a aposta nessas circunstâncias. Só que agora o que está em jogo é uma guerra nas fronteiras europeias, e a derrubada do Boeing mostra o quanto pode dar errado.

    Se é exagero dizer que há uma repetição da política de alianças que ajudou a disparar a Primeira Guerra Mundial, a escalada dos eventos traz uma sombria semelhança com o que ocorreu 100 anos atrás na Europa.

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