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    Análise: Nova guerra no Oriente Médio irá disseminar o terror

    SEUMAS MILNE
    DO "GUARDIAN"

    18/09/2014 12h07

    A mais recente campanha de bombardeios dos EUA no Iraque mal completou um mês, e já estão falando em escalada.

    Na semana passada Barack Obama prometeu que seus planos para destruir o chamado Estado Islâmico (EI) "não envolveriam tropas de combate americanas".

    Esta semana o general Dempsey, chefe do Estado-Maior Conjunto, disse que é exatamente isso o que ele vai "recomendar" se os ataques aéreos não funcionarem.

    Se "funcionar" significa destruir o domínio do EI sobre o oeste do Iraque e leste da Síria, eles não vão. Portanto, podemos prever que a nova guerra (que Chuck Hagel, o secretário da Defesa norte-americano, diz que vai durar vários anos) se intensifique nos próximos meses.

    Nesta quarta-feira (17), Obama reiterou sua promessa. Mas 1.600 "assessores" militares dos EUA já estão presentes em campo. Com certeza não demorará muito para forças especiais estarem de volta, em número importante.

    O empurrão final foi dado pelas repulsivas decapitações de jornalistas e voluntários americanos e britânicos pelo grupo fundamentalista sectário, filmadas em vídeo.

    O carrasco do EI declarou que as atrocidades eram uma retaliação pelos pouco mais de 160 ataques aéreos americanos lançados desde o início de agosto e pelo fato de o Reino Unido ter armado os adversários curdos do EI.

    Esqueça o fato grave de que o regime saudita, apoiado pelo Ocidente, decapitou dezenas de pessoas em público nos últimos meses, incluindo por "prática de feitiçaria", ou que, em incidentes infames durante a guerra malasiana, nos anos 1950, soldados britânicos se fizeram fotografar segurando as cabeças decepadas de guerrilheiros.

    Esses atos calculados de ciberterror hediondo prepararam o público americano para a onda de guerra ocidental renovada no Oriente Médio ao qual ele vinha resistindo até agora -e parece ter sido exatamente esse o objetivo do EI.

    Agora o presidente americano, eleito para tirar seu país da guerra no Iraque, dobrou-se à pressão implacável para voltar a travar guerra nesse país.

    É claro que desta vez, nos dizem, será diferente: no lugar de invasão e ocupação, "ataques cirúrgicos" e forças especiais atuando nos bastidores para dar apoio às tropas iraquianas e curdas.

    Mas a base principal do EI está na Síria, não no Iraque. Assim, Obama também se prepara para uma campanha ilegal de bombardeios na Síria e para treinar outros 5.000 "rebeldes moderados" -que autoridades americanas, falando reservadamente, admitem que "não existem realmente".

    Naturalmente, tudo isso foi aprovado por mais uma coalizão de países mais ou menos dispostos a passar ao largo do Conselho de Segurança da ONU. Assim, um ano depois de os EUA e seus aliados terem planejado bombardear as forças de Bashar Assad, agora planejam bombardear os inimigos dele.

    O primeiro-ministro britânico, David Cameron, prepara-se para intensificar o papel do Reino Unido na campanha assim que o referendo escocês acabar, e Austrália e França também estão ansiosas para participar.

    Fala-se até em criar novas bases militares britânicas em Estados do Golfo como EAU, Omã e Bahrein, para reforçar a guerra contra o EI.

    O que foi lançado pelos Estados Unidos e seus aliados esta semana é, na realidade, sua terceira guerra do Iraque em uma geração. Houve a guerra liderada pelos EUA para expulsar as forças iraquianas do Kuait, em 1991, e a cataclísmica invasão e ocupação americano-britânica do Iraque em 2003.

    Agora Obama lançou mais uma intervenção para livrar o país das consequências diretas da intervenção anterior. Não é preciso ser grande pensador estratégico para entender que é a riqueza energética do Iraque que tornou o país alvo de força militar tão ímpar.

    Mas os resultados não têm sido desastrosos apenas em termos de mortandade e destruição. As guerras ocidentais fracassaram mesmo em seus próprios termos.

    A invasão lançada por Bush e o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair expôs os limites do poderio dos EUA, não sua extensão. A guerra de Obama contra o EI está se parecendo mais com a guerra do Afeganistão, lançada em 2001 supostamente para destruir a Al Qaeda e o Taleban.

    O resultado dela espalhou a Al Qaeda pela região e converteu o Taleban num exército de resistência guerrilheira. Treze anos depois, o Taleban ainda controla grande parte do Afeganistão, e a maioria das tropas da Otan está de saída.

    A Al Qaeda foi eclipsada pelo ainda mais radical EI, que cresceu exponencialmente a partir da destruição patrocinada pelo Ocidente dos Estados iraquiano e sírio.

    Algo semelhante está acontecendo no caos legado pela intervenção da Otan na Líbia, três anos atrás. Estamos assistindo agora a um replay da guerra ao terror, mais de uma década depois de ter sido comprovado que ela alimenta o terrorismo, ao invés de combatê-lo.

    Desde o 11 de setembro de 2011, os Estados Unidos lançaram 94 mil ataques aéreos -em sua maioria contra o Iraque e Afeganistão, mas também na Líbia, Paquistão, Iêmen e Somália, matando centenas de milhares de civis nesse processo.

    Obama fala em tom de aprovação sobre as campanhas com drones e forças especiais no Iêmen e na Somália como sendo um modelo a ser seguido por sua nova guerra no Iraque. Mas os drones e as forças especiais não apenas mataram civis em grande número: eles têm servido como máquina de recrutamento para a Al Qaeda e o Al Shabab e intensificado guerras civis.

    E é isso o que está acontecendo no Iraque, onde ataques de forças governamentais apoiadas pelos EUA mataram 31 civis este mês, incluindo 24 crianças, numa escola nas proximidades de Tikrit.

    Neste momento, o EI é uma ameaça aos iraquianos e sírios e não lhes oferece futuro viável. Mas, como Obama já admitiu, um grupo que está mais interessado em controlar território como califado de fantasia que em travar jihad global ao estilo da Al Qaeda não representa uma ameaça direta aos Estados Unidos, nem ao Reino Unido, na verdade. No entanto, pode vir a se tornar uma ameaça, em consequência de uma intervenção renovada.

    A crise no mundo árabe não é reflexo apenas do cisma xiita-sunita inflamado pela ocupação do Iraque, mas também da continuidade dos governos de ditadores apoiados pelo Ocidente no Golfo Pérsico e no norte da África, do Egito à Arábia Saudita.

    O golpe sangrento do ano passado, tolerado pelos EUA, contra o islâmico presidente eleito do Egito abriu o caminho para a violência ao estilo do EI.

    A alternativa à nova guerra de Obama no Oriente Médio é uma pressão conjunta por um acordo apoiado pela ONU entre as principais potências regionais, incluindo Turquia, Irã e Arábia Saudita, para encerrar o conflito na Síria e apoiar um governo de união genuíno no Iraque.

    O fim do apoio ocidental à ditadura egípcia também ajudaria. Bombardeios não vão destruir o EI, mas lhe conquistarão partidários ou até mesmo o levarão a converter-se em algo pior.

    Apenas os iraquianos e os sírios podem derrotar o EI. Mas os Estados Unidos continuam determinados a conservar o controle sobre o Oriente Médio, ao mesmo tempo em que são incapazes de encontrar uma maneira estável de fazê-lo.

    Assim, sua resposta a cada intervenção fracassada é uma nova intervenção. Os EUA e seus aliados estão ao cerne do problema do Oriente Médio. Não são a solução.

    Tradução de CLARA ALLAIN

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