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    Depoimento: 'Meu filho é o milésimo curado de ebola nos centros da MSF'

    ALEXANDER KOLLIE
    NA LIBÉRIA

    22/10/2014 12h11

    O domingo, 21 de setembro, é um dia que nunca vou esquecer.

    Eu estava trabalhando com a MSF (Médicos Sem Fronteiras), como de costume, como funcionário de promoção da saúde, visitando vilarejos e falando com as pessoas sobre o ebola: como proteger-se e proteger suas famílias, o que fazer se começam a apresentar os sintomas, e me certificando de que todos tivessem à mão o número de emergência da MSF para telefonar se fosse preciso.

    Quando estava concluindo o trabalho do dia, recebi uma ligação do telefone de minha mulher, mas não era ela falando. Atendi a ligação, mas ninguém disse nada. Minha mulher tinha ficado na capital, Monróvia, com nossos três filhos, enquanto eu trabalhava em Foya, no norte da Libéria.

    Naquela época o ebola tinha chegado ao país, então tentei conversar com minha família sobre o vírus e explicar o que fazer, mas minha mulher não acreditou. Telefonei para ela, implorando que saísse de Monróvia e trouxesse as crianças para o norte, para podermos ficar juntos aqui. Ela não me deu ouvidos. Negou a existência do ebola.

    Katy Athersuch/MSF
    Sobrevivente do ebola Kollie James (esq.) e seu pai Alexander, em um abrigo da MSF em Foya
    Sobrevivente do ebola Kollie James (esq.) e seu pai Alexander, em um abrigo da MSF em Foya

    Mais tarde naquela noite, meu irmão me ligou. "Sua mulher morreu." Eu disse: "O quê?" Ele falou "Bendu está morta". Deixei o telefone cair. Joguei o telefone longe, e ele se despedaçou. Bendu e eu passamos 23 anos juntos. Ela me entendia. Era a única pessoa que me compreendia muito bem.

    Senti como se eu tivesse perdido minha memória por inteiro. Meus olhos estavam abertos, mas eu não sabia para o que estava olhando. Eu não tinha visão.

    Mais tarde na mesma semana, recebi outra ligação de Monróvia. Meu irmão, que trabalhava como enfermeiro, tinha cuidado de minha mulher. Mas ele se infectou e morreu também.

    Então minhas duas filhas menores foram levadas ao centro em Monróvia, mas minhas meninas estavam muito doentes e morreram. Eu me senti ainda mais impotente. Minha cabeça estava desmoronando. Nada fazia sentido para mim.

    Meu filho mais velho, Kollie James, ainda estava em Monróvia, na casa onde nossa família tinha adoecido, mas não mostrava sinais da doença. Ele me telefonou e disse: "Todo mundo ficou doente. Não sei o que fazer." Eu o mandei vir para Foya, para ficar comigo.

    Quando meu filho chegou, as pessoas no vilarejo não nos aceitavam. Nos disseram que toda nossa família tinha morrido e que eu devia levar Kollie James embora. Fiquei revoltado com a reação delas.

    Eu sabia que Kollie não apresentava nenhum sintoma e não era uma ameaça para elas, mas, por causa do estigma, não nos deixaram ficar. Tivemos que ir para outro lugar.

    Mas na manhã seguinte percebi meu filho com jeito mais cansado que de costume. Fiquei preocupado. Ele não apresentava nenhum dos sintomas comuns, como vômito ou diarreia, mas parecia cansado.

    Liguei para o telefone de emergência do ebola, e a MSF levou Kollie para seu centro de atendimento de ebola aqui em Foye para ser examinado.

    Quando o exame voltou com resultado positivo, foi uma noite de agonia para mim. Não fechei meus olhos por um segundo sequer. Passei a noite inteira chorando e pensando no que ia acontecer agora com meu filho.

    No dia seguinte os psicólogos da MSF me acalmaram. Me disseram para esperar. Para ficar em paz. Fiquei sentado com eles, e conversamos muito.

    Eu pude ver Kollie no centro de atendimento, do outro lado da cerca, então gritei para ele: "Filho, você é a única esperança que me restou. Você precisa criar coragem. Qualquer remédio que lhe derem, você tem que tomar."

    Ele me disse: "Pai, eu entendo. Pare de chorar, pai, eu não vou morrer, vou sobreviver ao ebola. Minhas irmãs se foram, mas eu vou sobreviver e deixar você orgulhoso."

    Todo dia os psicólogos faziam questão de me ver e se sentavam comigo para eu pudesse falar. A conversa com eles me ajudava a relaxar. Eles sabiam que não é um golpe pequeno que recebi da vida. Eu não queria ver meu filho lá dentro.

    Quando o vi lá dentro, pensei na mãe dele. Eu já a tinha perdido. Eu queria que ele sobrevivesse. Queria que ele fosse forte.

    Depois de algum tempo, meu filho começou a melhorar. Ele estava andando outra vez. Rezei para que ele se livrasse do ebola e que seus exames dessem negativo, mas eu ficava preocupado porque os olhos dele ainda estavam vermelhos. Eu só queria que ficássemos juntos de novo.

    Então aconteceu uma coisa espantosa. Só pude acreditar quando vi com meus próprios olhos.

    Até o momento em que vi meu filho saindo do centro, eu não conseguia acreditar realmente que isso pudesse acontecer. Já vi pessoas com ebola começarem a parecer que estão mais fortes e, então, no dia seguinte, elas se vão. Então eu pensava "talvez Kollie será uma dessas pessoas que vão embora no dia seguinte".

    Quando finalmente o vi sair de lá, fiquei tão, tão feliz. Olhei para ele e ele me disse: "Pai, estou bem". Eu o abracei. Um monte de gente veio vê-lo quando ele saiu do centro. Todo o mundo ficava feliz por vê-lo fora de lá.

    Então a MSF me disse que Kollie é o milésimo sobrevivente do ebola. É uma coisa importante, mas fiquei pensando: quantas pessoas mais já perdemos? Quantas não sobreviveram? É claro que estou tão feliz de ainda ter Kollie comigo, mas é difícil não pensar nas pessoas que não estão mais conosco.

    Quando o levei para casa comigo, ele estava sorrindo. E eu também estava com um sorrisão estampado no rosto. Naquele dia eu estava com um sorriso enorme. Resolvemos fazer uma festinha para ele. Desde então, Kollie e eu fazemos tudo juntos. Dormimos juntos, comemos juntos e temos conversado muito.

    Perguntei: "O que você quer fazer quando terminar o ensino médio?" Ele está na décima série. Ele me disse que quer estudar biologia e depois ser médico. Foi o que ele me falou!

    Então agora vou tentar de todo jeito lhe dar o que ele precisa e ajudá-lo a dar certo na vida, para que ele não sofra tanto pela perda da mãe. Eu disse a Kollie: "Agora eu sou sua mãe e seu pai. Estou sendo as duas coisas para você agora."

    Ele, por sua vez, me falou: "Vou fazer tudo por você como meu pai". Kollie está tão feliz porque eu o chamei para ficar comigo. O atendimento dado a ele no centro foi 100%.

    Agora que meu filho está livre do ebola, vamos fazer nossa vida. Kollie está com 16 anos, então ele vai ser meu amigo. Não apenas meu filho, mas meu amigo, porque ele é o único que eu tenho com quem conversar. Não posso substituir minha mulher, mas posso criar uma vida nova com nosso filho.

    Kollie James é o milésimo sobrevivente cuidado pela MSF em seus centros de atendimento a pacientes com ebola na Guiné, em Serra Leoa e Libéria desde que a MSF começou a responder ao surto de ebola na África ocidental, em março de 2014.

    Quase 3.000 pessoas estão trabalhando para a MSF na região, incluindo 250 funcionários internacionais.

    Texto enviado à Folha pela MSF no Brasil

    Tradução de CLARA ALLAIN

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