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    Análise: Tunísia mostra ao mundo árabe como nutrir a democracia

    SOUMAYA GHANNOUSHI
    DO "GUARDIAN"

    28/10/2014 02h00

    A Tunísia realizou neste domingo (26) sua segunda eleição livre e direta desde a revolução que derrubou a ditadura no país em janeiro de 2011.

    Embora os demais países da Primavera Árabe - Egito, Líbia, Síria, Bahrein e Iêmen - tenham decaído ao caos e ao conflito civil, ou retornado à sombria era dos golpes militares brutais, a Tunísia parece ter resistido às violentas tempestades em torno dela e para eleger um Legislativo representativo.

    O país adotou uma Constituição democrática moderna que conquistou a aprovação de 93% de seus diversificados partidos políticos. É a Constituição mais progressista da região árabe, garantindo os direitos da mulher, a liberdade de crença, consciência e religião, e proibindo o incitamento à violência e as excomunhões religiosas.

    A Tunísia criou uma comissão independente encarregada de organizar e fiscalizar a eleição desta semana e a eleição presidencial que acontecerá no próximo mês.

    O país ainda não escapou de vez da crise, porém. A Líbia, em sua fronteira sul, vive em tumulto, com anarquia descontrolada, proliferação de grupos armados e uma desintegração na estrutura do Estado. O Mali, no deserto da África subsaariana, mais ao sul, está sob o domínio do terrorismo. O mais ameaçador é a presença de um bloco de nações do Golfo Pérsico determinadas a aniquilar o que resta da Primavera Árabe, com o poder dos petrodólares. Ainda que a Tunísia tenha a sorte de ser geograficamente distante desse centro contrarrevolucionário, não está inteiramente imune aos seus efeitos destrutivos.

    O mais forte ativo da Tunísia pode ser sua sociedade coesa. Sem divisões sectárias, étnicas, religiosas ou tribais, as diferenças políticas e ideológicas não se transformam em divisões sociais, como acontece no Iraque, na Síria ou no Líbano. Com um processo de modernização que remonta ao século 19, a população do país é em larga medida urbanizada, tem nível de educação relativamente alto, com uma classe média ampla e uma sociedade civil vibrante.

    Se os Exércitos do Egito e da Tunísia foram celebrados amplamente como "guardiões da revolução", depois da derrubada de Hosni Mubarak e Zine el-Abidine Ben Ali, seus papéis não poderiam ter divergido mais no período posterior. Enquanto o primeiro terminou por tomar o poder, e governa com pulso de ferro, o segundo se retirou discretamente para seus quartéis. Isso não aconteceu por acidente, mas sim por conta das funções radicalmente distintas que as instituições militares exerceram ao longo da história recente dos dois países.

    Habib Bourguiba, o presidente da Tunísia logo que o país conquistou a independência, suspeitava muito do Exército e ansiava por evitar a repetição dos golpes encetados por Gamal Abdel Nasser, no Egito, e pelo partido Ba'ath, na Síria e no Iraque. O Exército tunisiano ficava em seus quartéis, restrito ao papel de proteger as fronteiras nacionais, razoavelmente tranquilas, e o mais distante possível da política.

    O regime autoritário de Bourguiba dependia de uma combinação da legitimidade que ele conquistou ao liderar o movimento de libertação nacional, de seu carisma pessoal e de doses consideráveis de repressão policial. Essa última se aprofundaria sob regime de Ben Ali, que fez da Tunísia um virtual Estado policial.

    O governo da Tunísia, com isso, foi deixado aos políticos, livres da presença impositiva dos militares. Sem a sombra onipresente das Forças Armadas, a política do país pôde se desenvolver espontaneamente, em meio às incertezas pós-revolucionárias.

    Enquanto a Irmandade Muçulmana, do Egito, adotou uma estratégia de exclusão depois de conquistar a vitória na eleição presidencial, o Nahda tunisiano –movimento do qual meu pai foi co-fundador– buscou formar coalizões políticas amplas com outros partidos laicos.

    Ao sair vencedor na eleição para a Assembleia Constituinte, em 2011, o movimento apelou por um governo de unidade nacional e dividiu o poder com dois partidos de inclinações esquerdistas e progressistas, o Congresso para a República e o Fórum Democrático, formando a chamada "tróika". Esse compromisso para com a formação de consensos protegeu a Tunísia contra a intensa polarização ideológica que maculou a vida política egípcia, abrindo caminho para o retorno da velha guarda.

    E quando a Tunísia entrou em crise depois do golpe militar no Egito –que coincidiu com o assassinato de um membro da oposição tunisiana–, o Nahda transferiu o poder a um governo provisório, na preparação para a eleição, o que causou fúria e descontentamento nas bases do movimento.

    Essa consciência quanto à complexidade da transição e os perigos apresentados pela região protegeu o país contra derramamentos de sangue, ajudando a manter no rumo sua democracia nascente.

    Ao longo de seus anos de exílio em capitais europeias, os líderes do Nahda parecem ter aprendido a arte do compromisso e consenso - o complexo processo da política, com suas difíceis negociações, concessões necessárias e mudanças de coalizões e alianças.

    Os acontecimentos na Tunísia são significativos não só para os 11 milhões de moradores do país mas para a região como um todo. O nascimento da primeira democracia árabe plena pode oferecer um modelo de esperança em meio às vozes febris do desespero e niilismo, e diante de um pano de fundo de ditadores militares, teocratas corruptos e anarquistas militantes. Da mesma forma que a Tunísia mostrou aos árabes como escapar à prisão da ditadura, três anos atrás, hoje ela uma vez mais demonstra que se pode construir uma democracia sobre as ruínas da velha ordem, por mais árdua que a estrada seja.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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