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    Esquerda sul-americana busca se adaptar

    SYLVIA COLOMBO
    DE SÃO PAULO

    01/11/2014 02h00

    Quando conversou com a Folha, há algumas semanas, em La Paz, o presidente da Bolívia, Evo Morales, ficou com os olhos marejados ao lembrar de sua primeira eleição, em 2005, e a de colegas esquerdistas que chegaram ao poder na mesma época.

    Tinha em mente líderes como Hugo Chávez (Venezuela, 1999), Lula (Brasil, 2002), Néstor Kirchner (Argentina, 2003), Tabaré Vázquez (Uruguai, 2004) e Michele Bachelet (Chile, 2005).

    "Sinto nostalgia. Era um tempo mais romântico, de entusiasmo popular e dificuldades. Agora o momento é outro, e exige mais pragmatismo", declarou o ex-líder cocaleiro, que iniciará um novo mandato no próximo dia 22 de janeiro.

    As recentes reeleições de Morales e Dilma Rousseff, a vitória no primeiro turno, e com grandes chances de consolidar-se, de Tabaré Vázquez (Uruguai), e os primeiros seis meses da gestão Bachelet expõem os novos desafios da esquerda latino-americana.

    Já sem o cenário de bonança econômica da década do "boom das commodities", os líderes da que ficou conhecida como "nova esquerda latino-americana" estão diante de um novo cenário internacional de desaceleração.

    Para analistas, serão tempos de maior polarização da sociedade, mais pragmatismo na área econômica e mais necessidade de alianças e negociação nos Parlamentos.

    Afinal, com exceção da Bolívia e do Chile, os demais terão um apoio mais pulverizado no Congresso.

    Pesquisa recente do instituto Poliarquia aponta que a Argentina pode ter, pela primeira vez na história, uma disputa de segundo turno em 2015, tamanha a polarização da sociedade e a cisão dentro do próprio peronismo.

    Força política dominante nos últimos dez anos, o kirchnerismo (vertente peronista) governou com ampla maioria no Congresso, sem necessidade de negociar apoios.

    "Na verdade, não temos tradição nesse tipo de alianças, a última vez foi em 1999, com o governo da Frepaso [Fernando de la Rúa], e as consequências foram nefastas [queda do governo em 2001, default e prolongada crise econômica]", disse o analista argentino Martín Dinatale.

    A mesma pesquisa apontou que a presidente Cristina Kirchner está com uma imagem positiva de 40%, isso mesmo com um cenário de alta inflação (30%, segundo consultoras independentes) e contração da economia (-1,7% de acordo com projeção do FMI).

    "Por que esse apoio ao kirchnerismo e por que as reeleições de Morales, Dilma e Tabaré? Porque as sociedades desses países veem uma melhora na última década e preferem não mudar. São conscientes de que há dilemas econômicos adiante, mas, frente à perspectiva de perder os benefícios sociais da última década, consideram mais seguro não colocar as conquistas em risco", diz o argentino Juan Tokatlian, do Departamento de Estudos Internacionais da Universidade Torcuato di Tella.

    novas bandeiras

    "A esquerda soube apropriar-se da bandeira do combate à desigualdade, realidade compartilhada por todos esses países. E os eleitores reagiram agora de forma pragmática, para não perder benefícios diante de um quadro que pode não ser tão favorável no futuro", diz o chileno Guillermo Hollzman, da Universidade de Valparaíso.

    Ele diz que "quem vota na esquerda, hoje, não quer revolução, mas manutenção, melhorar o que já está. Foi sobre esta ideia que o Chile elegeu Bachelet novamente".

    A presidente chilena, agora em seu segundo mandato (o primeiro foi entre 2006 e 2010), anunciou um pacote de reformas (política, educacional e fiscal) e a votação de uma lei de aborto.

    Seu novo governo tem sido avaliado como mais à esquerda do que sua gestão anterior.

    "As leis de direitos civis, nas quais o Uruguai se destaca, se transformaram em pontos importantes da pauta das campanhas, até mesmo na Bolívia, que é mais conservadora nesse ponto", resume Hollzman.

    Segundo ele, "trata-se de um fenômeno recente e um sinal de sofisticação política do eleitorado, resultante de uma melhora na educação de um modo geral, alcançada na última década".

    Assim como no Brasil, na Argentina e no Uruguai o combate à corrupção se transformou em elemento essencial das campanhas mais conservadoras.

    O caso do mensalão brasileiro, as acusações de enriquecimento ilícito dos Kirchner e a falência da estatal uruguaia Pluna foram usados pelos opositores dos governos eleitos.

    "Não estou seguro de que a corrupção é uma arma eficiente nesse momento. Se ela não acarreta uma consequência direta no cotidiano, se este se mostra vivível', a tendência é que não seja um argumento tão mobilizador e não tenha o poder de definir uma eleição", completa Tokatlian.

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