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    Prender usuários de drogas é desperdício de dinheiro, diz jornalista

    FERNANDA MENA
    DE SÃO PAULO

    25/11/2014 02h00

    O jornalista norte-americano Glenn Greenwald, 47, ficou conhecido mundialmente no ano passado ao revelar para o mundo que a NSA, a agência norte-americana de segurança nacional, espionava clandestinamente governos, empresas e civis no mundo inteiro.

    Os documentos lhe foram revelados pelo ex-agente da NSA Edward Snowden, que hoje vive na Rússia, na condição de asilado político.

    Bem antes de denunciar o sistema de vigilância global dos EUA, Greenwald se notabilizou no debate sobre política de drogas ao publicar, em 2009, um estudo consistente, recheado de dados, sobre os resultados da descriminalização do consumo de todas as drogas feita por Portugal. Lá, desde 2001, consumir drogas –seja maconha, seja heroína– não é crime, mas uma infração passível de multa e cuja reincidência leva a aconselhamento e tratamento, e não à cadeia.

    Nesta segunda (24), durante um evento no Rio de Janeiro, Greenwald ingressou no time de consultores da LEAP (Law Enforcement Against Prohibition, ou agentes da lei contra a proibição, na tradução livre), uma organização que reúne juízes, promotores, advogados e policiais que pede a substituição da proibição às drogas por um sistema de regulação e controle, que julga ser mais eficaz.

    Greenwald vai somar a consultoria ao trabalho no The Intercept, blog de jornalismo que lançou neste ano, financiado pelo bilionário Pierre Omydiar, dono do site eBay.

    O jornalista também estrela o documentário "Citizen Four" (sem data de estreia no Brasil), de Laura Poitras, que acompanha a revelação dos produtos da espionagem digital americana por Snowden ao jornalista e à diretora. O filme, que estreou nos EUA no final de outubro, já é cotado informalmente ao Oscar de 2015.

    Em entrevista concedida à Folha na mesma semana em que o Congresso americano barrou a reforma do modelo de espionagem protagonizado pela NSA, Greenwald chamou o presidente Obama de hipócrita. "Ele é um dos vilões dessa história".

    Leia trechos a seguir.

    *

    Como você avalia o bloqueio da reforma da NSA pelo Congresso norte-americano?
    Nunca esperei que fosse haver uma reforma de verdade da NSA por iniciativa do governo americano. Desde 11 de setembro, o governo usa o terrorismo como desculpa para fazer o que quer. Não esperava que a premissa da vigilância em massa fosse derrotada pelo mesmo governo responsável por ela. A pressão virá de outros países, de empresas e de indivíduos.

    Como você avalia a atuação do presidente Obama em relação ao escândalo da NSA?
    Ele tem sido completamente hipócrita. Quando estava em campanha, criticou duramente a NSA. Mas ele se tornou não só seu defensor mais agressivo como também a vigilância deu um salto enorme durante seu governo. NSA está espionando muito mais gente inocente em muito mais países na administração Obama do que na administração Bush. Obama é um dos vilões dessa história.

    O que ainda podemos esperar dos documentos da NSA?
    Estamos criando um sistema baseado em Nova York e vamos convidar jornalistas do mundo inteiro para trabalhar diretamente com ele. Queremos ampliar significativamente o acesso a esses documentos para aumentar a quantidade de reportagens sobre os arquivos.

    Você recém publicou texto sobre conflitos na relação de jornalistas com seu financiador, Omidyar. Quais são eles?
    Todo mundo está em busca de novas formas que financiar e viabilizar jornalismo de verdade porque é muito difícil fazer dinheiro com ele. Tentamos um novo modelo, que foi encontrar alguém que tenha uma quantidade extraordinária de dinheiro para nos financiar.

    Nunca houve uma reportagem que Omidyar tentasse barrar, mas ele queria fazer parte... [o post diz que ele queria ter absoluto controle sobre os gastos da redação, o que inviabilizava certas empreitadas].

    Toda vez que dois grupos começam a trabalhar juntos, há um período de adaptação. Houve desentendimento por pensarmos diferente sobre como a coisa deveria funcionar, mas chegamos a um entendimento. Se você quer tentar algo novo, sempre haverá algum desafio implícito.

    Não se fala mais na campanha para que o Brasil conceda asilo político a Snowden...

    As eleições presidenciais no Brasil colocaram essa questão de lado. E o fato de Snowden ter agora três anos de residência em Moscou, na Rússia, tornou a campanha menos urgente. Mas ainda é importante o Brasil responder a essa questão, apesar de me parecer que o governo brasileiro está mais inclinado a reatar relações com os EUA.

    Você é um dos protagonistas do documentário de Laura Poitras, "Citizen Four", que estreou nos EUA no mês passado...

    O filme é importante porque faz com que as pessoas vejam o que aconteceu enquanto estava acontecendo e construam sua própria opinião sobre o vazamento dos documentos da NSA em Hong Kong, na China. Muito já se falou sobre Edward Snowden e sobre quem reportou sobre o que ele revelou, então é importante que as pessoas possam ver o que aconteceu.

    Pouca gente sabe que você sé especialista em política de drogas. Como você se envolveu com esse tema?

    Em 2008, o instituto Cato [think tank norte-americano] me convidou a fazer uma pesquisa sobre os efeitos de uma lei que havia sido aprovada em Portugal em 2001. Sempre houve debate sobre o que aconteceria com a descriminalização do uso de drogas, mas era tudo especulativo. Hoje sabemos o que de fato aconteceu em um país de 10 milhões de pessoas. As evidências são impressionantes.

    Quais eram elas?

    Primeiro que colocar usuários na prisão é contraproducente e um desperdício de recursos. Se você parar de tratar drogas como algo da esfera criminal, e passar o caso para a esfera da saúde, pode começar a solucionar o problema em vez de apenas piorá-lo.

    Mas descriminalizar o consumo não aumenta o uso, o tráfico e o crime?

    É justamente o oposto. Há quase cem anos os EUA proibiram a produção e o consumo de álcool e criaram uma rede de crime organizado que, com a proibição, ganhou muito dinheiro e espalhou crimes relacionados a gangues. Quando o álcool foi legalizado novamente, esse tipo de crime desapareceu. É a mesma coisa com as drogas.

    Tornar o acesso mais fácil não vai aumentar o uso entre crianças e adolescentes?

    A experiência de Portugal mostra que isso não acontece. Se você parar de investir tanto dinheiro em processar e prender usuários de drogas, terá mais recursos para campanhas educativas e para aconselhamento.

    Portugal pegou esses recursos e começou a usá-lo de forma mais construtiva: para que o Estado alertasse as pessoas dos problemas que podem ser causados pelo uso de drogas. Isso fez diminuir o uso entre os mais jovens.

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