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    Análise: Periferias italianas são como bombas-relógio

    BEPPE SEVERGNINI
    ESPECIAL PARA O "NEW YORK TIMES", DE MILÃO

    02/12/2014 02h00

    As periferias das cidades italianas são como bombas-relógio. Longe do olhar dos turistas que perambulam pelo Coliseu, o pavio do país está cada vez mais curto.

    Todo um distrito suburbano de Roma, Tor Sapienza, foi às ruas recentemente para protestar contra a invasão de imigrantes, acusando-os de assaltos e violência e levando o papa Francisco a lançar um alerta sobre uma "emergência social" iminente.

    Nos bairros milaneses de Corvetto e Giambellino, o despejo de pessoas que ocupavam imóveis provocou choques. Em bairros da periferia de Nápoles, moradores revoltados chutaram viaturas policiais, deixando claro que têm mais confiança na Camorra, a máfia local, que nas forças oficiais. Hotéis e parques semiconstruídos nos subúrbios napolitanos de Fuorigrotta e Bagnoli estão caindo aos pedaços, servindo apenas como esconderijos.

    "O que há de novo nisso?" talvez perguntem os franceses ou britânicos. Para eles, distúrbios e agitação nas periferias e nos conjuntos habitacionais não sejam novidade. Mesmo na Itália, a agitação nos subúrbios tem longa data.

    Mas o que está provocando surpresa agora, até mesmo para os italianos, é a causa da insatisfação. Meio século atrás, nossos migrantes vinham do sul do país, não do sul do planeta. Milhões de pessoas viajavam para o norte da península, buscando as fábricas de Milão ou Turim ou procurando trabalho em volta de Roma, disputando trabalho e moradia com os deslocados pela Segunda Guerra Mundial. O poeta e cineasta Pier Paolo Pasolini, em seu romance "Meninos da Vida", descreveu o bairro romano de Prenestino, cheio "de casas pequenas como dados ou galinheiros, brancas como casas de árabes e pretas como barracos, repletas de vagabundos de Apúlia, Marcas, Sardenha ou Calábria".

    Hoje centenas de pessoas vindas da África ou do Oriente Médio arriscam suas vidas no mar para desembarcar na Sicília e Calábria. Muitas conseguem chegar até o norte do país. A rapidez com que esses migrantes chegam e o fato de terem se acumulado nas periferias das cidades são motivos de preocupação, nem que seja apenas porque os italianos estão pouco preparados para recebê-los. De acordo com o "Índice de Desconhecimento", uma pesquisa Ipsos Mori feita em 14 países, os italianos são os menos informados sobre o assunto: eles pensam que os imigrantes formam 30% da população de seu país, quando a cifra real é apenas 7%. É menos que no Reino Unido e Alemanha (ambos com 13%), Espanha (12%) e França (10%).

    Os imigrantes encontram abrigo na periferia das cidades, onde entram em conflito com os moradores tradicionais. É uma mistura perigosa: cerca de 90% da população italiana vive nas cidades ou seus arredores, e, apesar dos esforços do novo governo, a Itália é o único país da Europa que ainda está em recessão.

    Boa parte da responsabilidade por isso é das administrações locais, mas elas herdaram uma situação dramática, com construções inadequadas e em muitos casos não autorizadas, infraestrutura decrépita e serviços públicos que não conseguem atender à demanda. Mesmo as cidades supostamente prósperas do norte do país, como Milão, que vai sediar a Expo 2015, têm zonas como o bairro Sarca-Testi, onde o crime organizado atua com imigrantes ilegais, prostituição e tráfico de drogas.

    Todas as sociedades jogam seus problemas nas periferias, e a Itália não é exceção.

    Após anos de tentativas fracassadas de secessão do norte do país, o partido de extrema direita Liga do Norte agora está seguindo o exemplo de movimentos xenofóbicos como a Frente Nacional francesa e o britânico Ukip (Partido da Independência do Reino Unido). O secretário da Liga, Matteo Salvini, visitou um acampamento de ciganos nos arredores de Bologna, onde seu automóvel foi atacado por extremistas. Em poucas semanas, o apoio à Liga tinha dobrado nas pesquisas de intenção de voto.

    É também na periferia das cidades que são jogadas as ilusões partidas. Com frequências elas são "filhas" da construção ilegal e da cobiça. Nos últimos 50 anos, megaprojetos habitacionais públicos criados por arquitetos se deterioraram por falta de serviços e de atenção. Foi o caso do Zen, em Palermo (de Vittorio Gregotti), do Librino, em Catania (de Kenzo Tange), do Corviale, em Roma (de Mario Fiorentino) e do Rozzol Melara, em Trieste (de Carlo Celli).

    Mas é possível que nem tudo esteja perdido. As periferias das cidades italianas não são irredimíveis, mesmo que estejam desgastadas e enfraquecidas.

    O arquiteto Renzo Piano, hoje senador honorário vitalício, diz que podemos consertá-las. Piano usou seu salário de senador para contratar seis jovens arquitetos -três homens e três mulheres- que se propuseram a redesenhar e recuperar os arredores das cidades italianas. Chamado G124, o grupo recebeu o nome da sala no Senado que se converteu em sua sala de trabalho.

    Os projetos são locais e de foco restrito: o reparo de escolas, iluminação de ruas e instalações de transportes, ou então a retomada e recuperação de espaços públicos abandonados. "Não se pode esperar que jovens demonstrem uma faísca de consciência cidadã se prédios estão abandonados e caindo aos pedaços, se instalações de lazer e esportes são feias e não têm condições de segurança", observou Piano. "Acredito que a beleza vai salvar o mundo, começando, quem sabe, pela Itália. Afinal, a Itália é sua casa."

    Beppe Severgnini é colunista do "Corriere della Sera" e autor de "Mamma Mia! Berlusconi's Italy Explained for Posterity and Friends Abroad" (Mamma Mia! A Itália de Berlusconi Explicada para a Posteridade e para os Amigos no Exterior).

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