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    Crianças órfãs pelo ebola sofrem rejeição em Serra Leoa

    JEFFREY GETTLEMAN
    DO "NEW YORK TIMES"
    EM PORT LOKO, SERRA LEOA

    20/12/2014 02h00

    Sweetie Sweetie não teve escolha. Seu pai tinha acabado de morrer de ebola. Sua irmã, também. Sua mãe estava vomitando sangue e ficando cada vez mais fraca.

    Quando a ambulância chegou, Sweetie Sweetie também entrou nela. A garotinha aparentava estar bem, sem nenhum sintoma de ebola, mas ninguém no povoado queria ficar com ela. Sem ter aonde ir, ela acompanhou sua mãe a uma clínica de ebola e passou mais de 15 dias numa área de alto risco, onde as outras pessoas saudáveis só entravam usando roupas protetoras.

    Enquanto o estado de saúde de sua mãe se agravava, Sweetie Sweetie a incentivava a tomar seus comprimidos. Tentava alimentá-la. Ela lavava as roupas sujas de sua mãe -não muito bem, mas os enfermeiros disseram que seus esforços os comoveram. Afinal, eles acham que Sweetie Sweetie tem apenas quatro anos. Os profissionais de saúde nem sequer sabem seu nome real, então lhe deram o apelido de Sweetie Sweetie (algo como Doce de Coco).

    Depois que sua mãe morreu, a garotinha se postou na entrada da clínica, olhando em volta com seus olhos castanhos enormes. Não havia ninguém para buscá-la. Ela foi levada a um lar coletivo. Agora, assistentes sociais estão tentando encontrar alguém que a adote.

    Num dia recente, ela perguntou a uma visitante: "Você me quer?"

    O ebola tem sido terrível para as crianças. Mais de 3.500 foram contaminadas, e pelo menos 1.200 já morreram, segundo a ONU. Num esforço para conter o avanço do vírus, as escolas de Serra Leoa, Libéria e Guiné, os países mais afetados, foram fechadas, e hoje legiões de crianças são obrigadas por seus pais a fazer trabalhos árduos. Garotinhos que deveriam estar na escola quebram pedras à beira de estradas; meninas pequenas carregam enormes fardos de bananas na cabeça.

    Mas as crianças que estão em pior situação, de longe, são as que o ebola deixou órfãs. O Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) diz que pode haver 10 mil delas na região. Muitas são estigmatizadas e repudiadas. "Se ocorre uma guerra ou um terremoto e você perde mãe ou pai, uma tia cuidará de você", disse Roeland Monasch, diretor do escritório da Unicef em Serra Leoa. "Mas com o ebola é diferente. Essas crianças não estão sendo recebidas pelo resto da família."

    Nas regiões afetadas pelo ebola, as pessoas veem as crianças como pequenas bombas-relógio. Elas não lavam as mãos com frequência, vivem tocando em outras pessoas e infringem todas as regras do ebola. Algo tão simples como trocar uma fralda passa a ser um risco, porque o vírus é transmitido pelos fluidos corporais.

    "Acredita-se que as crianças pequenas representem um risco maior de contágio", comentou Monasch. Mesmo que não seja verdade, muitas famílias temem que essas crianças contaminem seus próprios filhos.
    Serra Leoa, que tem mais casos de ebola que qualquer outro país, já era um lugar difícil para crianças. Quase um quinto das crianças do país morre antes de completar cinco anos. Considera-se que esse índice possa aumentar devido à redução de imunizações e a todas as mortes por ebola.

    É um milagre que Sweetie Sweetie tenha sobrevivido. Ela dormiu numa cama ao lado de sua mãe doente, numa enfermaria superlotada, com pessoas morrendo à sua volta. Nunca chegou a receber roupa protetora -os enfermeiros disseram que não era o protocolo e que não havia roupa protetora que chegasse perto de seu tamanho. Sweetie Sweetie arrumava sua cama todas as manhãs e tentava alegrar sua mãe.

    Até agora, a menina não manifestou nenhum sintoma do ebola.

    Os assistentes sociais acham que seu pai foi um curandeiro e que seu nome real pode ser Mbalu Kamara. O único membro de sua família que conseguiram localizar foi um homem descrito como tio. De acordo com os assistentes sociais, ele é alcoólatra e não tem condições de criar a menina.

    Sweetie Sweetie continua a viver no lar, com nove outras crianças. A temperatura delas é medida duas vezes por dia, para verificar se estão apresentando sinais de ebola. Um bebê sugava uma caixa de leite vazia. A casa cheirava a peixe seco.

    As crianças passam muito tempo sentadas em cadeiras de plástico. Às vezes brincam de alguma coisa como "chefinho mandou". "Veja isto", disse um dos assistentes sociais. Ele chamou Sweetie Sweetie e lhe disse: "Ebola mandou...". Sweetie Sweetie respondeu: "Não toque!".

    A pessoa mais interessada em adotar Sweetie Sweetie é um jovem profissional de saúde que cuidou de sua mãe e disse que o último desejo dela foi que ele cuidasse da menininha. Seu nome é Usman Koroma. Ele disse que deu porções extras de arroz, laranjas, sopa e mingau a Sweetie Sweetie na clínica, para reforçar sua imunidade. "Eu amava a criança."

    O assistente social Musa Conteh comentou que as autoridades precisam ficar atentas para qualquer sinal de estranhos adotando crianças, pois há risco de tráfico de pessoas. Mas, quanto mais ouviu Koroma, mais Conteh pareceu ficar tranquilizado.

    "Vamos continuar a investigar", disse. "Mas esse homem parece ter instrução. Ele poderia dar vida nova a Sweetie Sweetie."

    Colaboraram Daniel Berehulak e Jaime Yaya Berry

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