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    Indonésio se apoiou por horas sobre cadáver para sobreviver a tsunami

    MARCELO NINIO
    ENVIADO ESPECIAL A ACEH (INDONÉSIA)

    21/12/2014 02h00

    Marcelo Ninio/Folhapress
    O vigia Musliadi, 30, descreve como sobreviveu à inundação coma ajuda do corpo de uma vítima
    O vigia Musliadi, 30, descreve como sobreviveu à inundação coma ajuda do corpo de uma vítima

    Quando a terra tremeu e o mar recuou, num prenúncio do tsunami, o vigia indonésio Musliadi estava no lugar errado, na hora errada. Ele trabalhava no porto, o primeiro local a ser atingido pela onda gigante em Banda Aceh, a cidade mais devastada pelo desastre de 2004. A história de sua luta pela sobrevivência poderia estar nas páginas da mais inspirada literatura fantástica.

    De fala mansa e quase sempre sorridente, hoje com 30 anos, Musliadi lembra com detalhes de tudo, mesmo dez anos depois. Primeiro, o terremoto derrubou o prédio da administração do porto. O mar recuou dezenas de metros e muita gente aproveitou para pegar os peixes que ficaram no leito seco, sem entender que estavam decretando a sua morte. Dez minutos depois, alguém gritou que a água estava voltando, conta Musliadi, mas para quem estava na praia já era tarde.

    "A onda chegou com um estrondo. Parecia o rugido de um dragão", diz o vigia. Ele ainda tentou se segurar numa cerca, mas a violência das águas era tamanha que ele foi arrastado, junto com tudo que estava ao redor. A onda chegou com uma velocidade de 600 km/h. Era impossível resistir.

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    Depois de ser levado por centenas de metros, Musliadi se agarrou ao galho de uma mangueira. As águas já estavam na altura dos telhados e sua maior preocupação era desviar de dejetos carregados pela onda. Chegou a ser atingido no ombro por uma grande pedra, mas não soltou o galho. Enquanto isso, rezava, com a água no pescoço. Quando viu que a onda havia deslocado até a barca de geração de eletricidade ancorada no porto, um colosso de 2.600 toneladas, não teve dúvidas: estava assistindo ao fim do mundo.

    Exausto, soltou o galho da mangueira. "Num certo momento, eu desisti. Me sentia como se estivesse num liquidificador. As águas me carregavam em círculos, do alto mar para a terra e de volta. Eu nada podia fazer. Aceitei a morte", diz Musliadi, erguendo as mãos para o céu.

    Por volta de meio-dia, após quatro horas no "liquidificador", surgiu a salvação. Musliadi avistou o cadáver de um homem e se agarrou nele. Sentiu-se incomodado, não queria desrespeitar um morto. Mas o instinto de sobrevivência foi mais forte. Subiu no cadáver e passou as horas seguintes sentado sobre ele. Começava ali uma longa e inusitada travessia a dois.

    Musliadi passou a conversar com o morto. Primeiro, pediu desculpas por estar usando o corpo dele como bote salva-vidas. Tentava lembrar trechos do Corão que justificassem o ato, mas não conseguia. Sua mente estava "em estado de caos".

    Depois, passou a conversar com o morto sobre sua vida, e o que faria se sobrevivesse. "Ficava tentando imaginar quem era aquele homem com quem passei os piores momentos da minha vida e o que ele diria se estivesse vivo", conta o vigia, reconhecendo o absurdo da situação. "Ele só me salvou porque estava morto."

    Cercado de água por todos os lados, Musliadi sentia sede como se estivesse no meio de um deserto. Por sorte, conseguiu abrir um coco e beber sua água. Também chupou uma laranja que a onda trouxe. Quando já escurecia, foi cercado por dois tubarões.

    Segundo ele, um chegou a roçar sua perna. Musliadi prendeu a respiração e mais uma vez se preparou para a morte. Mas eles rapidamente se afastaram.

    Depois de cerca de doze horas à deriva, finalmente conseguiu colocar os pés em terra firme. Musliadi mal conseguia acreditar que estivesse vivo. Olhou em volta, a devastação era total. Estava exausto, mas ainda precisava cuidar do seu companheiro de jornada.

    Com dificuldade, carregou o cadáver para um cemitério improvisado, onde uma cova coletiva estava sendo preparada. Fez uma prece e agradeceu ao homem e a Deus.

    Jamais soube quem era aquela pessoa que o salvou.

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