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    Análise: Nosso problema é a amnésia, não a imigração

    NATALIE NOUGAYRÈDE
    DO "GUARDIAN"

    07/01/2015 12h21

    O início de 2015 está sendo agourento em matéria de tolerância europeia. Mesquitas foram atacadas na Suécia. Na Alemanha, continuam as manifestações contra a "islamização do Ocidente". E o antissemitismo está em alta.

    Percebemos que algo desagradável estava no ar quando as eleições europeias do ano passado geraram um crescimento dos partidos populistas xenófobos. Muitas explicações foram aventadas: a crise econômica, o desemprego, a perda dos direitos das classes médias, as ansiedades alimentadas pela globalização.

    Atribuir a culpa a estranhos ou supostos invasores é um reflexo quase automático. Os partidos anti-imigração estão com a corda toda. De acordo com sua narrativa, todos nossos problemas vêm de fora, de alguma espécie de invasão. Na França, o escritor Michel Houellebecq está fazendo manchetes com um novo livro em que imagina a eleição de um presidente muçulmano em 2022.

    Fabrizio Bensch/Reuters
    Manifestantes numa marcha convocada pelo grupo anti-imigralção Pegida, em Dresden, na Alemanha
    Manifestantes numa marcha convocada pelo grupo anti-imigralção Pegida, em Dresden, na Alemanha

    É verdade que há sinais de um revival democrático contra o racismo. Alguns cidadãos vêm promovendo manifestações em cidades europeias em solidariedade com os muçulmanos. Talvez seja apenas quando acontece o pior -ataques incendiários contra mesquitas ou neonazistas se exibindo nas ruas-que as pessoas começam a mobilizar-se em nome da decência comum. Mas a tendência é preocupante ao extremo.

    Os europeus parecem estar tendo dificuldade com uma pergunta: "Como faço para conviver com pessoas de origem cultural diferente, com o Outro?".

    Em tempos como estes, a literatura e a história podem nos ajudar a enxergar as coisas com mais clareza. Eu me voltei ao escritor polonês Ryszard Kapuściński, que passou a maior parte de sua vida viajando pelo mundo em desenvolvimento e refletindo sobre como os europeus se relacionam com a parte enorme da população global que não é europeia e é muito mais pobre que os europeus.

    Em seu livro "The Other", Kapuściński -que, como jornalista, tinha falhas, mas a quem não faltava curiosidade em relação a culturas diferentes-observa como é difícil para os habitantes do velho continente aceitar que "o mapa-múndi mudou" desde a descolonização, na década de 1960.

    Depois de dominar o globo por centenas de anos, os europeus ainda têm dificuldade em aceitar o fato de que se tornaram menos centrais, menos hegemônicos. Mas isso é paradoxal, porque foi a Europa que gerou aquele que talvez tenha sido o primeiro cidadão do mundo aberto à descoberta e apreciação de culturas estrangeiras: o historiador grego Heródoto, 2.500 anos atrás.

    Posso praticamente ouvir as reações de rejeição: como é enganoso e idealista incluir Heródoto numa discussão sobre a imigração no século 21! Mas, se as raízes são importantes, os europeus precisam fazer um autoexame mais apurado. As coisas nunca foram estáveis na Europa, e as populações nunca foram estanques. Afinal, a Europa não passa do apêndice de uma massa terrestre vasta e repleta de contrastes. Seu papel sempre foi o de uma encruzilhada. As transformações podem nos deixar perplexos, mas houve épocas em que convivemos com muito mais diversidade em nosso meio.

    É ótimo ler Tony Judt a esse respeito. Em seu livro "Pós-Guerra" Judt recorda que "o continente europeu foi no passado um entremeado complexo de línguas, religiões, comunidades e nações que se sobrepunham umas às outras. Muitas de suas cidades -incluindo algumas das menores, nas intersecções de fronteiras imperiais velhas e novas, como Trieste, Sarajevo, Salônica, Czernowitz, Odessa, Vilnius-eram verdadeiramente multiculturais, com católicos, cristãos ortodoxos, muçulmanos, judeus e outros convivendo."

    Judt prossegur: "Entre 1914 e 1945, porém, essa Europa foi reduzida a cinzas". Em decorrência da guerra, de ocupações, mudanças no traçado de fronteiras, expulsões e genocídios, a maioria das pessoas acabou vivendo entre pessoas como elas, em Estados diferentes. Durante a Guerra Fria as duas metades da Europa viveram em 'enclaves nacionais herméticos'" -um mundo de homogeneidade, observa o autor.

    Na década de 1960, imigrantes chegaram à Europa ocidental, vindos principalmente das antigas colônias, para formar uma força de trabalho. Judt descreve isso como "uma nova presença de 'outros' vivendo na Europa", e esses outros incluem os milhões de muçulmanos que vivem na União Europeia hoje.

    Ele diz que essa presença "ressaltou não apenas o desconforto da Europa, confrontada com uma diversidade renovada e crescente, mas também a facilidade com que os 'outros' mortos do passado europeu desapareceram da memória das pessoas". E assim chegamos à situação atual: a intolerância de hoje tem suas raízes não apenas na frustração econômica, mas na amnésia.

    Desde 1989, muitos dos centros da Europa tornaram-se "cidades globais cosmopolitas, querendo ou não", escreve Judt. Note-se o "querendo ou não". O livro de Judt foi publicado dez anos atrás, como que antevendo a situação que vemos hoje. A mensagem do historiador é que o futuro da Europa é multicultural.

    Seus valores fundamentais envolvem a abertura ao Outro. Os únicos momentos em que os europeus viveram homogeneidade demográfica relativa -aquela era de suposta tranquilidade-foi na esteira das devastações geradas por Hitler e Stalin. Essas ideias podem não bastar para acamar as multidões antimuçulmanas. Mas podem ajudar.

    Tradução de CLARA ALLAIN

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