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    Opinião: Ataque deve levantar debate sobre indústria da guerra

    LÍVIA SOBOTA
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    14/01/2015 12h39

    Nos últimos dias, milhões de pessoas foram às ruas e às redes com uma bandeira: "sou Charlie". Compartilho sua indignação. Qualquer ato terrorista, não importa sua motivação, merece repúdio. Não há espaço para relativizações.

    Defendo a liberdade de expressão e não subscrevo qualquer tentativa de cerceamento da sátira esquerdista praticada pelo "Charlie Hebdo". Mas sinto dificuldades em dizer que "sou" o jornal.

    Apesar de ser ateia, não me agrada a ofensa gráfica a símbolos religiosos (o profeta Maomé de quatro, com uma estrela no ânus), por mais "progressistas" e "anti-fundamentalistas" que sejam as intenções dos autores.

    Muitos muçulmanos condenam assim os assassinatos em Paris: "não sou Charlie, sou Ahmed, o policial morto. Charlie ridicularizou a minha fé e cultura, e eu morri defendendo seu direito de fazê-lo". Muitos judeus, por sua vez, dizem "sou Yohav", um dos rapazes assassinados no mercado Hyper Cacher.

    Tanto Ahmeds quanto Yohavs sofrem com o racismo (islamofobia e antissemitismo) e a xenofobia ascendentes na Europa, agravados pelo contexto de crise econômica, desemprego e recrudescimento do debate sobre política migratória. É fundamental que a comoção coletiva que tomou as ruas reverta, ao invés de reforçar, essa tendência nefasta.

    Comecemos pelo básico. Nenhuma fé é intrinsecamente fundamentalista. O islamismo é uma religião rica, sofisticada, complexa, diversa e, como todas as outras, merecedora de respeito, não de estereótipos.

    Situar o massacre como "mais uma batalha na guerra civilizacional do Ocidente iluminista contra o Oriente obscuro", ou circunscrevê-lo à chave analítica do sectarismo religioso ("eles vivem brigando há milênios"), distorce o problema porque negligencia sua relevante dimensão geopolítica.

    Para prevenir e combater o terror, são indispensáveis policiamento, inteligência e coordenação. Mas também precisamos debater o papel das ocupações militares e intervenções externas, diretas ou indiretas, visando a mudanças de regime no Oriente Médio e no Norte da África, à margem do direito internacional.

    Essa indústria da guerra, que dificilmente entrega a democracia e a paz prometidas, alimenta a máquina terrorista e dela se alimenta, gerando insegurança, sectarismo e pobreza. Quem mais sofre as consequências são as pessoas comuns que vivem naquelas regiões.

    O conflito israelo-palestino é peça-chave nesse xadrez. Sua resolução começa com o fim da ocupação do território palestino (fronteiras de 1967); o cessar-fogo definitivo, a abertura e a reconstrução de Gaza; e o abandono, pelo Hamas, do lançamento de foguetes em direção ao território israelense.

    A cada novo assentamento ilegal, a cada metro do muro, a cada oliveira derrubada, a cada checkpoint, a cada humilhação cotidiana, fica mais distante o sonho de dois estados convivendo em segurança - condição necessária para que judeus e muçulmanos possam viver sem medo, permanentemente, em qualquer lugar do mundo.

    Fiquemos atentos ao que vem depois de Paris. Que os familiares e amigos das pessoas assassinadas tenham forças, em meio ao sofrimento inominável, para desautorizar eventual uso dos mortos como justificativa para mais preconceito e opressão. Como as pessoas que, tendo perdido entes queridos no World Trade Center, foram às ruas contra a invasão do Iraque, dizendo: "não em nosso nome".

    Cada vida interrompida é irreparável. Eu, em luto, "sou" hoje - no limite de minhas confortáveis circunstâncias - todos os que pereceram em Paris. Sou também as meninas nigerianas sequestradas pelo Boko Haram, e as incontáveis pessoas massacradas na última semana, sem gerar tantas hashtags, na fronteira da Nigéria com o Chade.

    Os garotos paquistaneses na escola em Peshawar. Os pequenos palestinos mortos em Gaza, em suas casas ou quando jogavam bola na praia. Os três jovens israelenses assassinados, e seus irmãos que têm o sono ou a aula interrompidos pela necessidade de se abrigar de um míssil. A lista não termina.

    Como brasileira, sou ainda Claudia, e Amarildo. Sou os 19 agricultores de Eldorado dos Carajás. Os 8 meninos da Candelária. Os 111 homens do Carandiru. Os 82 jovens -63 dos quais negros- assassinados diariamente no meu país. "Sejamos", na mesma medida, todos os que sofrem a indignidade da violência.

    LIVIA SOBOTA, 34, é diplomata e bacharel em direito. Atualmente, trabalha na Assessoria Especial da Presidência da República. O artigo expressa apenas a visão pessoal da autora.

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