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    Leia a íntegra do texto de jornalista alemã sobre prisão de colega chinesa

    ANGELA KÖCKRITZ
    DO "DIE ZEIT"

    29/01/2015 09h33

    Seguramos a divulgação desta história por muito tempo: uma chinesa que trabalha como assistente do "Die Zeit" está detida há mais de 12 semanas. Não queríamos complicar os esforços diplomáticos que estão sendo feitos para conseguir sua libertação. Mas, como eles ainda não renderam nenhum resultado, julgamos que é necessário levar a público agora o que aconteceu com nossa colega Zhang Miao.

    Angela Köckritz, nossa correspondente em Pequim, não está mais na China. Neste artigo, ela descreve seus contatos com autoridades chinesas.

    Vi minha amiga e assistente Zhang Miao pela última vez há três meses, no dia 1º de outubro de 2014. Eram 9h quando ela bateu na porta de meu quarto de hotel em Hong Kong. Eu ainda estava de pijama. Tínhamos estado na rua até tarde da noite, fazendo uma reportagem sobre os protestos do movimento Occupy Central. Miao estava voltando a Pequim, mas eu queria ficar mais em Hong Kong. Nos abraçamos. "Cuide-se", falei. "Pode deixar", ela me disse com um sorriso. "Você também. Em todo caso, vamos nos ver de novo em breve."

    Desde então, Miao sumiu. Ela está detida.

    Em meus quatro anos como correspondente, houve muitas ocasiões em que tive que escrever sobre justiça e injustiça na China. Assisti a coletivas de imprensa em que funcionários governamentais nos disseram que a China é um país regido pelo estado de direito, ou o que é conhecido nos círculos especializados como um Rechtsstaat.

    Conversei com agricultores cujas terras foram desapropriadas, que procuraram reparação mas não a conseguiram e, em vez disso, foram espancados e levados a um centro de detenção irregular por terem supostamente fomentado agitação. Entrevistei ativistas dos direitos civis que, com infinita tenacidade, lutam para converter a China naquilo que ela faz de conta que é: um país pautado no estado de direito. Visitei dissidentes que foram ameaçados e então, um dia, sumiram. Folheando meu caderninho de telefones, vejo os nomes de muitos que simplesmente desapareceram. Quando mencionei isso a um conhecido chinês, ele deu de ombros. Disse que esse tipo de coisa acontece com dissidentes, mas não com pessoas comuns.

    Mesmo assim, após uma série de circunstâncias infelizes, até a pessoa mais inocente pode ter problemas com o sistema de justiça e o aparato de segurança. É como o câncer: todo o mundo pensa que não vai ter. São sempre outras pessoas que são postas na prisão.

    Desta vez aconteceu com Miao. E, portanto, comigo também. Eu já sabia que as leis na China são válidas apenas quando atendem aos interesses do governo. Mas vivenciar isso em primeira mão é algo completamente diferente.

    Miao tem 40 anos, e eu a conheço há seis anos. Ela viveu na Alemanha por muito tempo. Tinha autorização de residência na Alemanha. Em Hamburgo, ela foi minha professora de chinês. Viramos amigas. Quando ela retornou a Pequim, dois anos atrás, começou a trabalhar na sucursal do "Die Zeit". O retorno não foi fácil para ela. Muita coisa já lhe parecia estranha, e ela tinha se distanciado de alguns de seus antigos amigos. Mas não demorou a fazer novos amigos na colônia de artistas de Songzhuang, onde ela mora, perto de Pequim.

    Miao e eu viajávamos com frequência a serviço do jornal. Já tínhamos passado por muita coisa juntas. Nós duas e nosso fotógrafo às vezes dizíamos, brincando, que éramos "san jian ke" -os Três Mosqueteiros.

    Reprodução
     Jornalista alemã faz campanha para que colega chinesa seja libertada
    Jornalista alemã faz campanha para que colega chinesa seja libertada

    Miao e eu voamos a Hong Kong em 24 de setembro de 2014. Tínhamos acompanhado as mudanças nos protestos. No domingo, 28 de setembro, a polícia disparou gás lacrimogêneo pela primeira vez. Passamos essa noite correndo pelas ruas, até as 5h.

    Perturbados com a notícia do uso de gás lacrimogêneo pela polícia, os moradores de Hong Kong saíram às ruas. As multidões cresciam a cada minuto que passava. A via expressa, as ruas, as travessias de pedestres e as pontes, todas estavam lotadas de gente. Ninguém poderia ter sonhado que haveria tantas pessoas. Naquela noite, muitas pessoas -incluindo Miao-acharam que Pequim colocaria tanques nas ruas. Miao não parava de abanar a cabeça, não conseguindo acreditar. "É exatamente como naquela época", dizia. "Em 1989, a gente também não imaginava que os tanques iam chegar."

    Miao era aluna da escola primária em 1989, quando estudantes fizeram manifestações na praça Tienanmen, em Pequim. Ela vivia perto da praça e com frequência levava água aos manifestantes. Na noite de 3 de junho, quando os tanques começaram a avançar, passaram ao lado do prédio dela. É possível ver buracos de balas nas paredes externas do edifício até hoje.

    Mas naquela noite em Hong Kong os tanques não vieram. Tampouco na noite seguinte ou na noite depois dela. Em vez disso, mais e mais pessoas passaram a encher as ruas nos dias subsequentes. O medo deu lugar à euforia. Desconhecidos sorriam uns para os outros e faziam fotos intermináveis, porque simplesmente não conseguiam acreditar: havia multidões de pessoas onde quer que se olhasse. Eram as maiores manifestações em solo chinês desde 1989. Miao não parava de exclamar: "Uau, é incrível!". Ela estava feliz, exultante. Uma menina lhe deu uma fita amarela, símbolo do movimento. Ela pregou a fita sobre sua roupa. Eu entendi o gesto, mas pedi que ela tirasse a fita, mesmo assim. "Somos jornalistas", falei, e Miao tirou a fita com um sorriso. Algumas horas mais tarde ela a pôs de volta, em outro lugar.

    Como muitas pessoas da China continental, Miao tinha comprado um iPhone 6 em Hong Kong. Ela tiraria fotos com ele e as postaria na WeChat, uma rede social chinesa. Miao é internauta inveterada. Nunca conheci alguém que faz tantos posts e comentários online quanto ela. Mas ficamos sabendo que a polícia chinesa estava interrogando e detendo pessoas da China continental ao retornarem, depois de fazerem fotos em Hong Kong e as transmitirem pelo WeChat. "Pare de fazer isso, Miao, por favor", implorei várias vezes. Ela sorria e colocava o telefone de lado. E pouco depois, recomeçava.

    Depois de uma semana, o visto dela para Hong Kong tinha chegado ao fim da validade. Ela teria que voltar a Pequim, mas eu queria ficar. Ela partiu no dia 1º de outubro, o Dia Nacional da China.

    Na manhã seguinte eu estava no meio de uma entrevista quando recebi uma mensagem de Miao pelo WeChat. Era uma foto feita na noite anterior. Mostrava Miao e quatro homens. Todos tinham pregado fitas amarelas e cruzado os braços diante do peito, como tinha feito o líder estudantil Joshua Wong na manhã de 1º de outubro quando a bandeira chinesa foi hasteada em Hong Kong. "O homem da esquerda foi preso", Miao escreveu sob a foto. "Um poeta."

    "Meu Deus!", pensei. E chequei para ver se ela tinha postado a foto em sua conta pública. Ela tinha. E também tinha mudado a foto de seu perfil. Agora a foto mostrava uma fita amarela.

    Eu queria poder fazer o relógio voltar para trás o que aconteceu nos 45 minutos seguintes. Em algum ponto durante esses 45 minutos, Miao deve ter saído de um carro em Pequim, apesar de ver policiais do lado da rua. Não sei se eu teria conseguido fazê-la parar. Eu queria pelo menos ter podido tentar.

    Durante aquele período de 45 minutos, terminei uma entrevista e corri para a seguinte. O dia estava totalmente cheio de compromissos. A recepção da internet era ruim no metrô. Não consegui encontrar o lugar onde eu tinha combinado um encontro com a próxima pessoa a ser entrevistada. Eu estava andando por um shopping center enorme. Queria urgentemente falar com Miao, mas não conseguia achar tempo para isso.

    Olhando em retrospectiva, parece que meu cérebro estava preocupado com as coisas mais tolas e insignificantes. Eu estava como alguém que corre pela cidade para buscar uma camisa limpa na lavanderia, sem perceber que um tsunami está se erguendo sobre sua cabeça.

    Finalmente eu estava diante do café onde o encontro teria lugar. Enquanto meu entrevistado se aproxima, tento ligar para o número de Miao. Mal tínhamos nos sentado para tomar um café quando a notícia da prisão de Miao me chegou simultaneamente por dois canais diferentes. A redação em Hamburgo estava na linha, dizendo: "Um certo sr. Zhang das autoridades de segurança chinesas ligou. Ele diz que Miao foi presa." O irmão de Miao me enviou mensagem com a mesma notícia. Ninguém sabia exatamente o que tinha acontecido.

    Fico colada ao telefone. Nos dias subsequentes, praticamente não faço outra coisa. Mal como, mal durmo. Tenho que tirar Miao de lá, de alguma maneira. Entro em contato com a embaixada alemã, com o Clube dos Correspondentes Estrangeiros, com a família de Miao, seus amigos, a redação do jornal, com o sr. Zhang dos serviços de segurança. Zhang trabalha para a Administração de Saída e Entrada do Ministério de Segurança Pública, que emite vistos para estrangeiros.

    De tempos em tempos, seu órgão também convoca jornalistas estrangeiros e ameaça não estender seus vistos se o governo não gostar de suas reportagens. Até agora, não tive problema com ele.

    "Sr. Zhang, o que está acontecendo?", pergunto.

    "Não tenho certeza", ele responde. "Ela se envolveu numa altercação numa vila. Incitando um distúrbio público ou alguma coisa assim."

    "Altercação numa vila? Não consigo imaginar algo assim. O senhor pode me dar o telefone da delegacia de polícia responsável?"

    "Não posso."

    "Como posso conseguir o telefone?"

    "Também não posso lhe dizer isso."

    "Mas alguém deve ter telefonado ao senhor."

    "Sabe de uma coisa? Vou perguntar por aí. Depois retorno a ligação."

    Enquanto isso, faço mais ligações. Descubro que Miao foi presa na colônia de artistas quando estava a caminho de uma leitura de poesia em apoio aos manifestantes de Hong Kong. Naquele momento, ninguém consegue me dizer mais que isso.

    Mr. Zhang está ao telefone outra vez. Seu tom de voz é triunfal. "Zhang Miao é cidadã chinesa; ela não tem passaporte alemão", ele fala. "E não estava oficialmente registrada como sua assistente."

    "Não estava", reconheço. Muitas redações de veículos de mídia não registram seus assistentes há algum tempo, porque isso significaria mais monitoramento por parte do Ministério de Segurança do Estado -e é mais caro. Agora me pergunto se isso não a teria protegido, de alguma maneira. As autoridades vão explorar esses fato, sem dúvida alguma. Me sinto culpada.

    "O que aconteceu não tem nada a ver com você", fala Zhang.

    "É claro que sim", respondo. "Ela é minha assistente. Eu sou responsável."

    "O caso não tem nada a ver com trabalho jornalístico. Me disseram que ela agiu de modo abusivo", ele fala em tom de asco. "Que ela deu empurrões em policiais e os xingou tremendamente. Uma coisa pavorosa."

    "Sinto muito, sr. Zhang, mas não consigo imaginar isso", digo.

    "De qualquer maneira", ele responde, "Zhang Miao é uma cidadã chinesa completamente normal. E vamos lhe dar o tratamento que damos a cidadãos chineses."

    No dia seguinte embarco para Pequim à noite. Chego em casa por volta das 4h. É o sábado, 4 de outubro. Quando me levanto, ao meio-dia, vejo no display do meu telefone que já recebi várias ligações do sr. Zhang. "Dê uma passada aqui", ele diz. "Queremos bater um papo." Ele emprega a palavra "laiotian", bater papo, como se fôssemos encontrar amigos num café.

    Eu já descobri quais dos amigos de Miao têm informações sobre o que aconteceu. Telefono a eles, já que quero estar preparada antes de ir ser interrogada. Três testemunhas me contam o seguinte: na manhã de 2 de outubro, Miao vai com alguns amigos à casa do poeta, que tinha sido preso no dia anterior.

    Querem visitar sua família. Quando chegam lá, a polícia já está à sua espera. Segue-se uma troca de palavras iradas. Mais tarde, Miao e uma amiga querem ir à leitura de poemas em apoio aos protestos em Hong Kong.

    Um amigo artista as leva lá de carro e as deixa lá. A polícia já está parada na entrada da rua. Miao e sua amiga descem do carro. O amigo artista as vê correndo para o local onde o evento terá lugar. Os policiais correm atrás delas. As mulheres tentam fugir.

    Os policiais as capturam. Elas são jogadas com força contra o carro da polícia. Foi só isso que o amigo motorista conseguiu ver. A polícia o mandou ir embora. Miao parece ter conseguido sair de lá, já que alguns minutos mais tarde telefonou a outra amiga. A conversa é interrompida várias vezes. "Querem nos prender!", ela grita. "Eles nos bateram!"

    Então o telefone fica mudo. Não há mais contato com Miao. Não há mais qualquer rastro dela.

    Nos meses seguintes, mais e mais pessoas em toda a China são detidas por apoiar o Occupy Central. De acordo com informações de ativistas dos direitos civis, mais de 200 pessoas foram detidas. Dez pessoas foram presas em Songzhuang. Todas têm alguma ligação com a leitura de poemas. Eu conheço quatro delas.

    Vou de carro até a delegacia policial do sr. Zhang. Ele me conduz a uma sala sem janelas. Dois colegas jovens dele já estão ali, sentados com cadernos: um certo sr. Xu e um escrivão. Tiro meu caderno e anoto seus números de identificação. "Que negócio é esse?" Zhang pergunta. "Isto não é uma entrevista!" Eles falam mandarim comigo.

    "Quero documentar este caso", digo. "Já li muito sobre o desenvolvimento do estado de direito na China e agora o estou vivenciando pessoalmente. Espero poder escrever com tom positivo."

    "Sim", responde o sr. Xu, "seja positiva. Você verá que o Estado constitucional chinês lhe dará todas as razões para isso."

    Eles me interrogam: como conheci Miao? O que fizemos em Hong Kong? Quem entrevistamos? Como eu fiquei sabendo do que aconteceu em Pequim? Ao longo do interrogatório, Miao passa de agitadora suspeita a agitadora "de facto".

    "Por que vocês sempre dizem 'a agitadora'?" pergunto. "Ainda não houve uma decisão judicial sobre isso."

    "Já falei 'suposta'!", Zhang me diz com a voz irada. "Você quer que eu repita isso toda vez ou o quê? Isto é uma conversa entre amigos. Mas você não está agindo como tal. E chega de tomar nota. Isto não é uma entrevista!"

    "Sinto muito", digo, "mas a palavra 'suposta' é uma palavra muito importante."

    Agora Zhang fica ainda mais furioso. "O que é tudo isso?" ele pergunta. "Quem você pensa que é, afinal? Você é realmente alemã? Você é muito diferente dos outros alemães!"
    "É mesmo?"

    "Eles são honestos."

    "E eu não sou?"

    "Não é. Você é estranha. Muito estranha. Com os outros jornalistas alemães, a relação sempre foi muito agradável."

    "Não foi o que eles me disseram."

    "Com você, não é nem um pouco agradável. Se eu estivesse em seu lugar, ficaria mais atenta."

    Enquanto Xu vai pouco a pouco assumindo o papel do tira bonzinho nessa conversa, Zhang assume o do tira malvado. Quando menciono isso aos dois, Zhang fica furioso. "Você vai tratar conosco com mais frequência", ele diz. "Como quando for pedir seu próximo visto, para o ano que vem. Pode haver problemas. Tome cuidado."

    "Quero saber onde está Miao", respondo. "Pela Lei chinesa de Procedimentos Criminais, a família precisa ser informada dentro de 48 horas após a prisão. Mas ainda não fomos informados de nada."

    O sr. Xu sorri para mim. "O caso dela não tem absolutamente nada a ver com você", ele fala. "Não se preocupe com isso. Tenha fé no estado de direito na China. É perfeito."

    Zhang sai da sala irado, enquanto Xu me acompanha até a saída. Ele aperta minha mão, mas depois não a solta. "Não se preocupe com Zhang. Às vezes ele fica um pouco emotivo. Sabe o que é, ele estudou na Alemanha e tem uma opinião muito elevada dos alemães. Da próxima vez eu a convidarei para um café, ok? E um papinho."

    No dia seguinte ainda não temos notícias de Miao. O irmão dela recebe a informação de que talvez esteja no Primeiro Centro de Detenção de Pequim. Algumas horas mais tarde estamos diante do prédio: eu, o irmão de Miao e sua madrasta. Esta trouxe uma sacola com agasalhos, já que as noites andam esfriando. A prisão fica na periferia de Pequim. Do outro lado da rua há prédios de apartamentos amarelos, deprimentes. Atrás de um muro alto crescem árvores altas. Não dá para ver muita coisa.

    O guarda é um sujeito jovem, de uniforme maltrapilho.

    "Queremos saber do paradeiro de uma detida", eu digo.

    "Voltem depois dos feriados", ele responde.

    "Depois dos feriados?"

    "Sim, em alguns dias."

    "Mas não há feriado na prisão, certo?"

    "Não."

    "E os guardas?"

    "Também não têm feriado."

    "Então tem que haver alguém que possa nos ajudar."

    "Voltem outra hora", diz o guarda, bocejando.

    "Estou escrevendo uma reportagem sobre o estado de direito na China. Quer que eu cite você como tendo dito isso e mencione seu número de identificação?"

    O guarda parece acordar e nos deixa ir até o porteiro. Este também fala nos feriados. Depois do que parece uma eternidade, ele chama seus superiores: dois homens e uma mulher. Um dos homens anota informações pessoais detalhadas a nosso respeito. Ele se demora a folhear seu caderno antes de fechá-lo com expressão grave.

    "Eu poderia ver se ela está aqui, mas há os feriados", ele fala, começando a se virar.

    "Mas", eu digo, "segundo as normas chinesas relativas aos procedimentos criminais, vocês são obrigados a nos notificar em até 24 horas depois da prisão. As 24 horas já se passaram."

    Ele me olha com a expressão entediada, dizendo: "Há os feriados".

    "E o estado de direito?" respondo. "Também está de folga?"

    Agora o homem parece quase enojado. "Não tenho nada a lhe dizer, nada", ele responde. "Você não é membro da família, nem advogada. Vá embora."

    Eu ligo para o sr. Xu. "O senhor não me disse que a China como país governado pelo estado de direito é perfeita?", pergunto. "Estou passando por uma situação aqui e neste momento que não me parece tão perfeita. Estou diante da prisão..."

    "Escute, desista disso, ok?" ele me diz. "Isso não é da sua conta. Nós cuidaremos dessa questão."

    "Isto é de minha conta, sim", respondo. "Quero falar agora mesmo com algum responsável, alguém de escalão mais alto."

    "Não podemos ajudá-la. Não temos um nome nem um número."

    "Mas tem que haver um departamento. Qual departamento está cuidando deste caso? Qual promotor público?"

    "Não sabemos", ele diz. "Vá para casa." E desliga o telefone.

    Os policiais diante da prisão se recusam a falar mais comigo. Eles tratam a família de Miao com condescendência. Vamos embora. Quando nos sentamos no carro, estou enfurecida.

    "Esses caras....", falo.

    O irmão de Miao dá de ombros. "Até que eles não foram tão ruins. Pelo menos não gritaram conosco, como de praxe."

    Enquanto isso, o advogado de Miao, Zhou Shifeng, está trabalhando febrilmente para conseguir um encontro com a detenta. O encontro não é aprovado, então Zhou continua a tentar e registra uma queixa. As coisas vão continuar assim por meses.

    "Como isso é possível?" pergunto a ele.

    "A lei diz que as autoridades de segurança do Estado precisam notificar a família em até 48 horas depois da detenção", ele diz. "Mas há um trecho a mais: 'a não ser que seja necessário realizar mais investigações'."
    "Então isso quer dizer que a polícia sempre pode evocar uma exceção?", pergunto.

    "Quando legisladores fazem leis, eles o fazem em seu interesse próprio, e não porque estejam preocupados com os interesses do público."

    "As autoridades de segurança precisam anunciar que estão evocando uma exceção ou precisam que a exceção seja autorizada?"

    "Não", responde Zhou. Em princípio, ele explica, o aparato de segurança pode encontrar uma cláusula de exclusão para todas as leis. Os cidadãos não têm o direito legal de ser protegidos contra o Estado e seus representantes.

    Na quarta-feira, 8 de outubro, o mandado formal de detenção é entregue à família por um oficial de justiça. O mandado diz que Miao está detida no Primeiro Centro de Detenção de Pequim e é suspeita de incitar um distúrbio público.

    A polícia gosta de lançar mão desse delito criminal sempre que mira contra inconformistas. No pior caso, esse delito pode ser punido com até dez anos de prisão. Continuamos a torcer para que Miao seja libertada em alguns dias.

    Nessa semana os governos alemão e chinês prepararam a visita de Estado do premiê Li Keqiang à Alemanha. Ele vai viajar a Berlim na quinta-feira, 9 de outubro, com vários de seus ministros.

    O encontro está sendo anunciado como a maior consulta entre os governos na história dos dois países. Nos dias que antecedem o encontro, vários veículos de mídia me telefonam, incluindo o "South China Morning Post" e o "New York Times".

    Querem publicar matérias sobre Miao. Sua família pede que apenas alguns poucos fatos sejam levados a público.

    Agora surge a pergunta: devo escrever sobre a situação de Miao no período que antecede a visita de Li Keqiang?

    Cada um com quem falo me dá um conselho diferente. Quanto mais reflito sobre isso, mais claro me parece: ninguém tem como saber se divulgar a situação de Miao vai ajudar.

    Este é um país governado pela arbitrariedade. A incerteza dolorosa que estou sentindo é intencional.

    A embaixada alemã em Pequim está se esforçando muito para ajudar Miao. Estou aprendendo a apreciar muitíssimo o serviço diplomático. A Chancelaria Federal e o Ministério do Exterior estão tratando do caso de Miao, e todos os ministros federais foram informados do assunto.

    Nesta quinta-feira à noite a agência de notícias alemã dpa vai pôr no ar um informe sobre a situação de Miao. Eu mesma vou escrever um texto pequeno para o "Zeit Online".

    Na manhã de quinta-feira recebo uma ligação do sr. Xu. Ele quer que eu passe por lá -para um papo. Quando entro na salinha sem janelas, três homens já estão sentados ali: dois investigadores e um escrivão.

    Eles são de uma categoria diferente da de Zhang e Xu, mais velhos e mais experientes.

    Os investigadores dão seus nomes como sendo Li e Guan. Li é o falador. Ele tem olheiras escuras e um rosto incomum. É capaz de alterar sua expressão em segundos -agora sedutora, agora lisonjeira, depois ameaçadora.

    Guan é um tipo que lembra mais um buldogue, persistente, monossilábico, duro. Li diz que é o vice-diretor da divisão. Mas meu palpite é que ele é de escalão ainda mais alto. Não me dão uma chance de verificar suas identidades reais.

    Fica claro que Li quer começar com uma conversa descontraída. Ele quer falar de hobbies, de filosofia e cultura. Não está claro para mim por que precisamos fazer isso numa salinha sem janelas na delegacia.

    De qualquer maneira, o aparato de segurança já sabe como passo meu tempo livre.

    "Adoro cavalgar", diz Li. "Em sua opinião, o que faz alguém ser um bom hipista?"

    "Imagino que talvez seja a sensibilidade", respondo.

    "Um bom cavaleiro sabe exercer controle total sobre seu cavalo", ele diz, lançando um olhar intenso para mim. "Então o cavalo faz tudo o que ele quer."

    O sr. Li gosta de metáforas hípicas. Ele as emprega com frequência durante a conversa e sempre me olha quando o faz, como se dissesse "eu sou o cavaleiro, você é o cavalo".

    Li conversa um pouco mais e então me ameaça com a não extensão de meu visto de jornalista. Dou de ombros e digo: "Nesse caso, irei a Hong Kong e trabalharei a partir de lá".

    "Então eu a visitarei lá", ele responde, irritado. "Não pense que poderá me evitar."

    Ele me pergunta repetidas vezes como conheci Miao e se confio nela.

    Ele segue várias conversas ao mesmo tempo. Sua voz tem diferentes registros, diferentes alturas. Ele tenta me atrair para fora de minha concha emocional. Pergunto por que nosso advogado não pode se reunir com Miao. "Você não deveria ter preocupações tão exageradas", ele responde. "Estamos investigando o caso. Só é preciso um pouco de tempo."

    O sr. Li quer saber como foi a reunificação da Alemanha para mim. Se eu fiquei feliz quando as duas Alemanhas foram unificada. Se sou patriota. Ele diz que é patriota ardente. "A unidade da pátria é mais importante para mim que qualquer outra coisa", ele fala.

    Tento lhe explicar que a maioria dos alemães tem um problema com o termo "patriotismo" desde Hitler. Há coisas da Alemanha que amo e outras que acho problemáticas.

    "Eu amo tudo da cultura chinesa", Li diz, ardente.

    "Tudo?", pergunto.

    "Tudo", ele responde com voz de certeza.

    "Mesmo o Grande Salto à Frente? Mesmo a Revolução Cultural?"

    Li fecha seu caderno sem proferir uma palavra e sai da sala. Acho que está furioso.

    O buldogue assume seu lugar. Ele não quer bater papo sobre filosofia. Faz perguntas incisivas. No final do interrogatório, exige que eu assine um depoimento.

    Está escrito em chinês sobre quatro ou cinco páginas. Eu me nego a assinar. Ele insiste. O bate-boca parece durar horas.

    Leio o documento bem devagar, três ou quatro vezes. O sr. Xu, o sujeito bonzinho, volta à sala. Ele geralmente volta sempre que o ambiente fica péssimo. Xu é o "Mr. Sunshine" da delegacia.

    Agora ele não está de uniforme. Ele conversa comigo enquanto estou lendo, tentando distrair minha atenção.

    Digo a Guan, o policial, que haverá reportagens sobre Miao antes da visita de Li Keqiang.

    "Isso pode ter consequências negativas", ele fala.

    "Que tipo de consequências negativas?"

    "Consequências negativas. Pense bem."

    O interrogatório já dura quatro horas e meia. Exausta, saio da sala e vou para o corredor, onde todos os policiais estão em pé.

    Eles dão risada, contam piadas. E, de repente, são incrivelmente simpáticos.

    O sr. Li diz que gostaria de me convidar para uma refeição particular com ele alguma hora. "É tão agradável conversar com você", diz.

    "Para ser sincera, o interrogatório com você já foi o suficiente para mim", responde.

    "Mesmo assim, queremos vê-la amanhã. Gostaríamos de conversar com você sobre a cobertura", ele diz, dando uma risada.

    Xu aperta minha mão de novo e acrescenta: "Já somos velhos amigos, não?"

    Na Alemanha, Li Keqiang desembarca em Berlim ao meio-dia pelo horário local

    . Naquele exato momento a dpa está lançando uma chamada sobre sua matéria. Outros veículos de mídia retomam a história.

    A Anistia Internacional lança um chamado pela libertação de Miao. Na manhã seguinte um jornalista alemão pergunta a Li Keqiang sobre o caso durante uma coletiva de imprensa conjunta com Angela Merkel.

    O ministro do Exterior, Frank-Walter Steinmeier, toca no assunto com Li.

    Mas Miao não é libertada.

    Na manhã da sexta-feira, 9 de outubro, recebo duas ligações ao mesmo tempo. Oficiais de segurança querem falar comigo, e o Ministério das Relações Exteriores chinês, também. "Como faço?" pergunto ao funcionário do Ministério do Exterior. "Meu interrogatório ontem durou quatro horas e meia."

    "Venha imediatamente depois", ele diz. "É urgente."

    Começo a ir à delegacia de polícia. As olheiras do sr. Li estão ainda mais pronunciadas que ontem.

    "Ficamos sentados aqui até as 2h", ele fala. "Pensamos muito em você. Nos perguntamos quem você é -quem você realmente é."

    Estamos sozinhos na sala.

    "Hoje não vamos rodear o assunto", ele fala. "Vamos direto ao que interessa."

    Concordo com um gesto de cabeça.

    "O que é a coisa mais importante numa corrida de cavalo?" ele indaga.

    "Não faço ideia."
    "O jóquei precisa conquistar a confiança do cavalo em muito pouco tempo."

    "Ahã."

    "Você confia em mim?"

    "Não leve isso pessoalmente, mas não."

    "Mas você disse que confia em Miao, certo?"

    "Sim."

    "E se ela for completamente diferente do que você pensa?"

    "Não acredito nisso."

    "Miao depôs que você organizou tudo. Os eventos em apoio ao Occupy Central. Que vocês duas foram a Hong Kong para organizar protestos lá. Que ela trabalhava para você pessoalmente, e não para o jornal."
    "Ela não disse isso!"

    "Mas ela disse. Temos provas."

    "Quero ouvir isso pessoalmente da boca de Miao. Todos sabemos que as confissões feitas em prisões muitas vezes não são voluntárias."

    "Você organizou tudo."

    "Não organizei."

    "Sabemos que sim."

    "Ao meu ver, existem três possibilidades", eu digo. "Ou Miao foi forçada a dar esse depoimento. Ou ela não disse a verdade. Ou você não está me dizendo a verdade."

    "Existe uma quarta possibilidade também", diz Li em voz suave. Então, de repente, ele grita: "Você está mentindo! Você está mentindo! Está mentindo!"

    Ele fica em pé e sua voz ganha volume. "Você está mentindo! Você está mentindo! Você está mentindo!"

    Ele parece ameaçador.
    "Você está mentindo!"

    Eu me viro para o lado. Será que ele pensa isso, de verdade? Ele vai declarar que sou um "agent provocateur", uma espiã?

    Primeira possibilidade: ele está tentando me intimidar, destruir a confiança que existe entre Miao e eu.

    Segunda possibilidade: realmente querem me qualificar como espiã. Uma coisa se opõe a essa conclusão: as relações com a Alemanha são importantes para a China.

    Se estivessem procurando um bode expiatório, provavelmente seria alguém de outra nacionalidade, possivelmente uma pessoa japonesa.

    Por outro lado, estes são tempos excepcionais. A segurança de Estado se encontra em estado de alarme. A liderança está prestes a promulgar uma nova e abrangente lei antiespionagem.

    Desde o início ela declarou que o Occupy Central é uma "revolução colorida" apoiada por potências estrangeiras. O argumento seria mais crível se a liderança pudesse exibir um espião suspeito. Eu, talvez?

    Eles não têm prova nenhuma. Mas o aparato de segurança chinês tem muitas opções à sua disposição: pode recorrer a outras leis, distorcer evidências, lançar campanhas de difamação ou recorrer a métodos mafiosos. Um jornalista americano foi informado através de canais indiretos que ele e sua família não estavam mais em segurança em Pequim.

    "Quero suspender esta conversa agora", digo. "Só falarei com você na presença de um funcionário da embaixada. Vou ligar agora para o adido de imprensa."

    O primeiro adido de imprensa promete enviar o segundo.

    "Não o deixaremos entrar", diz a polícia.

    "Seja como for, ele já está a caminho", respondo.

    Li sai da sala e Guan assume seu lugar. Ele quer saber tudo sobre as atividades de Miao no WeChat. Quer que eu dê nomes.

    Eu me nego a dizer qualquer coisa. Ele se irrita. Vou até a porta, mas os policiais se colocam diante dela e não me deixam passar. O telefone toca. É o Ministério do Exterior. Querem falar comigo agora.

    "Sim, sim, sei que os assuntos que vocês têm com ela também são importantes", fala Guan, como um irmão mais velho falando com seu irmão menor. Ele está irritado. Quer que eu assine uma declaração. Eu me recuso.

    Quem me aguarda do lado de fora é o próprio "Mr. Sunshine", Xu, de ótimo humor. "Você é sensível demais, só isso", ele fala.

    Comparado com isso, meu encontro com os diplomatas chineses é positivamente agradável. Eles não gostam do fato de artigos sobre o caso de Miao terem sido publicados bem quando ocorre uma visita de Estado, mas se mantêm corteses, civilizados.

    A diferença entre eles e meus novos conhecidos na segurança de Estado não poderia ser maior. As pessoas sentadas no Ministério do Exterior são as pombas, as pessoas mundanas, mas seu ministério é o mais fraco da China. Já o Ministério da Segurança de Estado é extremamente poderoso.

    No dia seguinte, sábado, 11 de outubro, recebo mais uma ligação de Xu. É para eu ir lá para um interrogatório. Um bate-papo.

    "Estou doente", digo a ele.

    "Venha assim mesmo", ele responde.

    "Isso não daria certo. Eu contaminaria todos vocês."

    No domingo ele me escreve uma mensagem de texto dizendo: "Agasalhe-se bem. O tempo vai mudar. Não se esqueça de fazer repouso. Seu policial, Xu."

    No fim de semana leio muitos artigos de jornal em tom positivo, falando de como a China é um país baseado no estado de direito. Está para ter lugar o terceiro plenário do Partido. Seu lema é "o estado de direito". Ainda não tivemos notícia de Miao.

    Na segunda-feira, 12 de outubro, Xu está ao telefone outra vez. Ele quer conversar. Desta vez, insisto que não falemos mais em chinês. Vou acompanhada de um adido de imprensa da embaixada e de um tradutor. "Você deveria contratar um advogado agora", diz o diplomata quando estamos a caminho da delegacia. "Se quiserem colocá-la em detenção antes do julgamento, não poderemos fazer nada -a não ser protestar."

    Três homens nos aguardam na sala de interrogatório. Um deles é o investigador que vem interrogando Miao. Cabelos curtos. Rosto largo e carnudo. Pele de um fumante intensivo. À sua direita está um homem usando jaqueta de couro, que não se apresenta.

    Perguntamos quem ele é. Ele dá um sorrisinho misterioso.

    "Estou em todo lugar", ele diz. "Conheço vocês todos. Posso ser visto em muitas fotos."

    Embora diga pouco, é ele o ameaçador. Ele deve ocupar o escalão mais alto. Nenhum dos homens diz a qual divisão pertence. Quando faço essa pergunta ao sujeito musculoso, ele sorri com ar tão humilde e lisonjeado que o que ele diz não pode ser verdade: "Sou um simples policial, só isso".

    Suas perguntas são duras e incisivas. Na mesa à sua frente há páginas e páginas de declarações tiradas da conta de WeChat de Miao, uma pilha toda. Suas perguntas são voltadas na seguinte direção: Miao era minha assistente pessoal. Eu sou mais que uma jornalista. Tenho uma agenda totalmente diferente. Nós tivemos encontros com críticos do regime. Separatistas. Demos dinheiro a eles.

    Percebo que ele está apertando a corda mais e mais em torno do meu pescoço. Suas perguntas são apoiadas em fatos. Sim, eu tive encontros com críticos do regime. Sim, depois de uma entrevista eu dei €70 a uma advogada de direitos civis que estava gravemente lesionada, para ela comprar remédios; a segurança de Estado a havia espancado tanto que agora ela está presa a uma cadeira de rodas.

    Mas sempre viajei como jornalista, não como espiã ou agente de provocação, como o interrogador musculoso não para de insinuar.

    Estou começando a sentir em primeira mão uma coisa sobre a qual já li muito: a habilidade deles em distorcer o significado das coisas.

    É possível que tenham material suficiente para usar contra mim. Eles vêm me espionando há quatro anos –grampeando meu telefone, espionando meu apartamento. Eles vêm lendo meus e-mails e monitorando o que eu posto em redes sociais.

    Em algumas ocasiões traíram o fato de terem revistado minha casa: a caixa de cartões de visita que guardo sobre minha escrivaninha apareceu do lado de fora, sobre a caixa de correio. Uma porta que eu tinha deixado trancada está aberta. O horário no meu computador foi mudado do horário de Pequim para o de Seul. Essas coisas também acontecem com outros correspondentes.

    É uma ideia preocupante, mas geralmente não deixo que me incomode demais. Senão, como eu poderia viver aqui? Mas, agora que sei que eles não estão apenas colhendo informações, mas que vão usá-las, as coisas começam a ficar diferentes.

    Penso em todos os dados sensíveis, relacionados a trabalho, do celular de Miao e de sua conta de e-mail. Agora eles estão com a segurança de Estado. Começo a senti náuseas. A internet deixa os cidadãos transparentes perante as autoridades chinesas.

    Pergunto como está Miao e por que a Lei de Procedimento Criminal está sendo ignorada.

    "Não se preocupe com isso. Ela está ótima."

    "Duvido".

    "Vocês, jornalistas, acham que o Occupy Central é a razão. Mas há mais que isso em questão. Há a segurança do Estado, sua integridade territorial. É por isso que a Lei de Procedimento Criminal não se aplica neste caso."

    "Me disseram que ela apenas se envolveu numa altercação num povoado."

    "Trata-se de incitar a agitação, e isso é questão de interesse nacional."

    As perguntas sobre Miao feitas pelo agente musculoso ficam mais e mais persistentes. Exijo a presença de um advogado. Agora querem que eu assine uma declaração de dez páginas escrita em chinês. Não fornecem uma versão traduzida e não permitem que levemos uma cópia original para que nós mesmos a façamos traduzir. Permanecemos firmes em nossa recusa.

    "Traduza aqui. Verbalmente. Temos tempo. Podemos passar a noite toda aqui."

    Discutimos por mais uma hora. Eles acabam nos deixando ir embora. Estamos indignados.

    "Uau", diz o tradutor quando estamos de saída. "Eles a acusaram de tudo: separatismo, antagonismo, Hong Kong. As perspectivas não estão nada boas para você."

    "Quero ir embora amanhã", digo.

    "Tomara que você consiga sair amanhã", fala o adido de imprensa que me acompanha. "Precisamos escoltá-la até o portão de saída no aeroporto, para que não tentem prendê-la de última hora."

    Naquela noite faço as malas com pressa frenética: cadernos, dados, cartas. Sei que haverá uma orgia de revistas assim que eu for embora. No dia seguinte, dois funcionários da embaixada me levam até o portão de embarque no aeroporto.

    Enquanto estou no aeroporto, outra correspondente liga para mim. Ela me diz que a Phoenix TV, uma estação de Hong Kong, mencionou uma jornalista alemã que estava viajando à ilha como "agent provocateur". Assim que desligo, recebo um SMS de Xu, o policial: "Qual é seu nome no WeChat? Me mande para que possamos nos falar por muito tempo. Bem-vinda de volta a Pequim."

    Não temos mais notícias de Miao por muito tempo, não obstante as inúmeras tentativas feitas pelo advogado. Durante suas investigações ele descobre que ela não está mais no Primeiro Centro de Detenção. Nosso medo é que ela tenha acabado numa "prisão negra". Essas prisões ilegais estão fora do alcance da lei. O pessoal de segurança pode fazer o que quiser; os detentos são espancados com frequência ou sujeitos a agressões sexuais.

    Alguns dias depois, ficamos sabendo que Miao foi transferida para a prisão de Tongzhou, um subúrbio de Pequim.

    A lei proíbe policiais e carcereiros de cometer abusos contra detentos. Mas eles muitas vezes se valem de certos colegas de cela que maltratam outros detentos com o conhecimento dos guardas ou a pedido deles.

    O advogado finalmente é autorizado a ver Miao, em 10 de dezembro. Ele indica que não podemos falar livremente ao telefone, mas me diz que Miao está sofrendo, física e psicologicamente. Diz que ela continua firme e que os agentes de segurança querem forçá-la a assinar uma declaração dizendo que seus laços comigo foram cortados.

    Ela ainda não o fez.

    O hashtag no Twitter que defende a liberdade da jornalista chinesa é #freemiao


    Tradução de Clara Allain

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