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    Como os países do Ocidente perderam Vladimir Putin

    DO "FINANCIAL TIMES"

    04/02/2015 12h44

    Depois de mais de 40 telefonemas e incontáveis horas de reuniões nos últimos seis meses, Angela Merkel estava se preparando para um último esforço. Passava das 22h e a chanceler [primeira-ministra] alemã estava acomodada em uma sala de conferência do hotel Hilton em Brisbane, Austrália. Seu interlocutor era o implacável Vladimir Putin.

    Por quase duas horas, o presidente russo recitou uma litania de ressentimentos. O Ocidente havia proclamado vitória na Guerra Fria. Havia trapaceado Moscou ao expandir a União Europeia e a Organização para o Tratado do Atlântico Norte (Otan) até as fronteiras da Rússia. Havia ignorado as regras internacionais e seguido políticas irresponsáveis no Iraque, Afeganistão e Líbia.

    Merkel tentava reconduzir a conversa para o leste da Ucrânia, onde separatistas com apoio russo estão envolvidos em uma sangrenta luta contra o governo apoiado pelo Ocidente, revelou uma pessoa informada sobre a reunião.

    Desde que a crise começou, Merkel se esforçou para obter de Putin alguma indicação do que ele deseja -algo que ela pudesse usar para construir um acordo. Quando Putin por fim ofereceu uma solução, ela ficou chocada.

    Putin declarou que Kiev deveria lidar com os rebeldes da mesma maneira que ele lidou com a Tchetchênia quando a região estava lutando para se separar da Rússia: comprando-os com dinheiro e ofertas de autonomia.

    Uma ideia razoável, talvez, para um antigo coronel do KGB. Mas para a filha de um pastor da Alemanha Oriental, com um senso muito desenvolvido de equanimidade, a sugestão pareceu inaceitável.

    Vladimir Putin é o grande desestabilizador. Faixa preta em judô, ele é especialista em manter o adversário sempre fora de equilíbrio. Putin alterna gestos amistosos e olhares ameaçadores.

    Ao longo da crise na Ucrânia, a mais grave ameaça à segurança da Europa desde o final da guerra fria, Putin conseguiu apanhar os líderes do Ocidente desprevenidos a cada manobra.

    Eles sabem que o objetivo dele é restaurar a influência russa e manter a Ucrânia na órbita de seu país, mas não têm como adivinhar de que maneira Putin pretende atingir seus objetivos.

    Merkel pediu a seus assessores mais próximos que saíssem da sala, na reunião de Brisbane, em 15 de novembro do ano passado.

    "Ela queria ficar sozinha com ele... para testar se era possível convencer Putin a falar mais abertamente sobre o que ele realmente deseja", disse uma pessoa informada sobre a conversa. "Mas ele não revelou qual é sua estratégia, porque nem ele sabe".

    Quando a reunião no hotel acabou, por volta das 2h, a chanceler Merkel e o presidente Putin estavam de mau humor. Horas mais tarde, o líder russo voltaria para casa, abandonando o segundo dia da conferência de cúpula do Grupo dos 20 (G20), furioso por ter sido esnobado por outros líderes mundiais. Merkel, de acordo com duas pessoas informadas sobre o ocorrido, partiu convencida de que não haveria fim rápido para a crise.

    Ela se preocupava, também, com a possibilidade de que as ambições de Putin de reafirmar a influência russa se estendessem para bem além da Ucrânia. No dia seguinte, em Sydney, ela deixou de lado sua cautela habitual.

    "Quem imaginaria que, 25 anos depois da queda do Muro de Berlim... algo assim poderia acontecer no meio da Europa?", ela declarou em discurso. As escapadas de Putin na Ucrânia "colocam em questão toda a ordem pacífica da Europa". Ela também acrescentou um novo alerta - que a Rússia poderia vir a ameaçar não só a Ucrânia mas a Geórgia ou os Bálcãs.

    Para Moscou, também, um limite parecia ter sido atingido. Semanas mais tarde, um funcionário do Kremlin descartou o conceito, muitas vezes mencionado em círculos diplomáticos, de que existisse um "relacionamento especial" entre os dois líderes: "Putin e Merkel jamais se suportaram", ele disse ao "Financial Times".

    "É claro que são profissionais e por isso tentaram criar o melhor relacionamento possível, por muito tempo. Mas isso parece ter mudado agora".

    Saul Loeb - 6.jun.2014/AFP
    A chanceler alemã, Angela Merkel, é a principal negociadora com Putin na crise com a Ucrânia
    A chanceler alemã, Angela Merkel, é a principal negociadora com Putin na crise com a Ucrânia

    TRAIÇÃO

    O encontro entre Merkel e Putin na Austrália foi o ponto de inflexão. Depois de um ano de crise, o Ocidente percebeu que estava vivendo uma ilusão: a de que apesar de todas as suas dificuldades no pós-comunismo, a Rússia estivesse percorrendo um caminho inexorável de convergência com a Europa e o Ocidente - o que um importante funcionário alemão define como a ideia de que "no fim, eles todos se tornarão parecidos conosco".

    "Agora a questão é reconhecer as diferenças", ele disse. O fracasso de meses de diplomacia deixou os dois lados à beira de uma nova Guerra Fria. Depois de Brisbane, não houve novos encontros entre Merkel e Putin, ainda que ela continue a conversar com o presidente russo ao telefone.

    E com a nova intensificação da ofensiva dos rebeldes apoiados pela Rússia no leste da Ucrânia, o acordo de Minsk - o cessar-fogo assinado em setembro - está arruinado. O destino da Ucrânia, um país industrializado e rico em agricultura com 45 milhões de habitantes, posicionado no limite entre o Ocidente e o Leste, está indefinido. O risco de uma escalada no conflito continua alto.

    Depois de entrevistas com ministros, importantes líderes da União Europeia, autoridades e agentes de inteligência de mais de 10 países, o "Financial Times" reconstruiu os meses nos quais a diplomacia por fim fracassou.

    É uma história de erros de cálculo dos dois lados; de subestimativas ocidentais quanto à disposição de Putin de defender o que ele apresenta como interesses fundamentais russos; e acima de tudo, de duas partes envolvidas em um diálogo de surdos, aprisionadas em narrativas completamente diferentes.

    Da perspectiva da Ucrânia, a história também é uma história de traição. Durante os protestos que irromperam no começo de 2014 - e terminaram por derrubar o governo de Viktor Yanukovich, pró-Rússia -, ela se tornou o primeiro país da Europa a assistir à morte de manifestantes que portavam bandeiras da União Europeia. Muita gente em Kiev acredita que o Ocidente tenha deixado a Ucrânia na mão.

    De acordo com autoridades de Kiev e com críticos severos da Rússia, a maior falha do Ocidente foi admitir que não estava preparado para usar força militar a fim de defender a Ucrânia contra o vizinho dotado de armas nucleares - e nem mesmo para fornecer armas aos ucranianos.

    Isso restringiu desde o começo a ação política do Ocidente, deixando as sanções econômicas como único instrumento confiável. Há quem diga que essa postura deixou o Ocidente sem qualquer política real.

    Mas embora a União Europeia e o Ocidente não tenham conseguido promover a paz ou mudar o comportamento de Putin, conseguiram alguns sucessos - ao obter unidade nas sanções e a ratificação do tratado entre a União Europeia e Kiev.

    Essa unidade será testada nos próximos meses: é necessário consenso da União Europeia para renovar suas abrangentes sanções econômicas contra a Rússia, que vencem em junho.

    Até agora, as sanções agiram, na descrição de um funcionário do governo norte-americano, como um "acelerador" para a inesperada queda nos preços do petróleo que arremessou a economia da Rússia a uma profunda crise.

    O rublo despencou, o que deixa a Rússia diante de uma recessão e de uma disparada inflacionária, e desafia sua capacidade de bancar a dispendiosa guerra clandestina na Ucrânia (que segundo o Kremlin não envolve a presença de soldados russos, apesar de amplas provas em contrário).

    Merkel assumiu posição central durante a crise, não só como decana dos chefes de Estado europeus - ela assumiu o governo em 2005 - mas também por ter uma compreensão única das forças que influenciam a psicologia de Putin.

    Putin, 62, e Merkel, 60, se lembram bem da Guerra Fria. O fato de que ela fale russo é outra vantagem. As conversas dela com Putin, que aprendeu alemão quando serviu como agente do KGB em Dresden, muitas vezes começam em alemão. Mas pessoas informadas sobre o diálogo dizem que Putin passa a falar russo quando as coisas "se complicam".

    Durante uma tensa reunião, em outubro em Milão, quando os líderes europeus tentaram sem sucesso fazer com que Putin respeitasse os termos do acordo de Minsk, a chanceler interferiu em uma discussão em russo entre Putin e o presidente ucraniano Petro Poroshenko.

    Os dois estavam brigando sobre um detalhe de um acordo quanto à realização de eleições no território ocupado pelos rebeldes, e ela corrigiu Putin firmemente, falando russo.

    Como na crise da zona do euro, no caso da Ucrânia Merkel também assumiu papel de liderança internacional para a Alemanha pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial. Nas palavras dela, a Ucrânia significa um "teste da resolução" do Ocidente, e ela vê a situação como desafio à paz na Europa.

    "Merkel deixou claro desde o começo que... não estamos diante de acontecimentos marginais", diz Norbert Röttgen, presidente do comitê de assuntos internacionais do Legislativo alemão.

    A chanceler, sempre cautelosa, teria preferido que os aliados da Alemanha assumissem a liderança quanto à Ucrânia. Mas os Estados Unidos, Reino Unido e França estão distendidos por conta do tumulto no Oriente Médio. Um diplomata da União Europeia diz que "Merkel tomou conta do assunto, e ficamos felizes por ela tê-lo feito".

    Os Estados Unidos também ficaram felizes por ela ter assumido a responsabilidade. De acordo com um importante funcionário em Washington, Poroshenko, o oligarca eleito presidente da Ucrânia em maio, estava ansioso por realizar conversações pessoais com Putin.

    Mas ele queria a presença de outros líderes capazes de forçar o presidente russo a respeitar os compromissos assumidos. Merkel era a escolha óbvia. "A posição do governo é a de que ela é o melhor interlocutor que o Ocidente tem para dialogar com Putin", disse um antigo diplomata dos Estados Unidos.

    Alexey Druzhinin - 11.nov.2014/AFP
    Barack Obama se distanciou de Putin por não ter conseguido lidar com o presidente russo
    Barack Obama se distanciou de Putin por não ter conseguido lidar com o presidente russo

    OBAMA

    O presidente Barack Obama, dos Estados Unidos, teve sua cota de conversas telefônicas com Putin, mas em geral optou por ficar em segundo plano.

    Pessoas informadas sobre a política dos Estados Unidos dizem que o presidente acredita que Putin não respondeu aos esforços dele para criar um relacionamento.

    "Obama vê o mundo em termos de as duas partes saírem ganhando, e Putin vê o mundo em termos de uma parte precisar perder para que a outra ganhe", segundo o ex-diplomata.

    A falta de química entre os dois é visível. Nas palavras de Obama, Putin "senta meio largado, como um aluno entediado no fundão da sala de aula".

    Merkel conhece bem as operações psicológicas de Putin. Em 2007, ele usou o conhecido medo de cachorros de que a chanceler sofre e deixou que Koni, seu labrador preto de estimação, a recepcionasse na residência de verão do presidente russo em Sochi. Fotos mostram Merkel de cara feia, com a cabeça do cachorro em seu colo.

    Funcionários do governo alemão dizem que a chanceler não se deixa atingir por essa e outras jogadas de Putin, como por exemplo chegar com horas de atraso para a conferência de cúpula de Milão. Em lugar disso, ela tira vantagem do fato, interpretando os maus modos do líder do Kremlin como sinal de fraqueza.

    Mas Merkel é persistente. Para ela, dialogar com Putin não envolve apenas tentar mudar seu comportamento mas garantir que ele compreenda como as ações da Rússia são percebidas no Ocidente. Os diplomatas suspeitam que Putin esteja cercado de sicofantas incapazes de lhe dizer a verdade sem adornos. Sugerem, por exemplo, que foi apanhado de surpresa pela unidade da União Europeia quanto às sanções.

    "Ela é uma das poucas pessoas que, regularmente, ergue diante de Putin um espelho no qual ele pode ver suas ações", disse uma fonte informada em Berlim.

    Merkel se prepara meticulosamente, estudando mapas da Ucrânia oriental e consultando-os em suas conversas telefônicas com Putin. "Há mapas e diagramas, com estradas e postos de vigilância", diz um diplomata europeu. "Ela tem esses detalhes. Está informada sobre eles".

    Merkel costumava ver Putin como um parceiro difícil, mas com quem era possível tratar. Mas a crise da Ucrânia a levou a mudar de ideia. Ela percebeu que Putin não estava lhe dizendo a verdade em suas conversas - por exemplo, ao negar que tropas russas estivessem diretamente envolvidas na ocupação da Crimeia e, mais tarde, da Ucrânia Ocidental.

    Merkel não declarou em público que Putin mentiu, mas já o fez em particular. "Ela não cansa de dizer aos outros líderes que ele está mentindo", diz o diplomata da União Europeia.

    Desafio tão grande quanto o de lidar com Putin vem sendo manter a unidade entre a União Europeia e os Estados Unidos, cujos laços se desgastaram muito por conta da guerra do Iraque, 10 anos atrás.

    Os dois lados também sofrem divisões internas. Em Washington, surgiram cisões entre partes diferentes do governo, com alguns funcionários do Departamento de Estado assumindo postura mais dura que a da Casa Branca.

    Dentro da União Europeia, a Polônia e os países bálticos assumem linha mais dura quanto à Rússia do que países como a Itália. Merkel teve de persuadir a cética comunidade dos empresários alemães, hesitante quanto aos danos no relacionamento com a Rússia, de que havia necessidade de ação robusta.

    Frank-Walter Steinmeier, ministro do Exterior da Alemanha, por muito tempo foi proponente da necessidade de um acordo com Putin sobre a Ucrânia. Mas Merkel aos poucos o fez compreender que isso pode ser impossível.

    Em Brisbane, ela garantiu que Steinmeier fosse convidado a se reunir com o líder russo em Moscou, porque sentia a necessidade de "desiludi-lo", disse uma pessoa conhecedora do que aconteceu na reunião.

    Inicialmente, as sanções da União Europeia eram mais brandas do que as aprovadas pelos Estados Unidos - ainda que os anúncios tenham sido sincronizados. Mas um acontecimento na metade de julho resolveu todas as diferenças, unindo o Ocidente em sua ira diante da agressão russa: a derrubada do voo MH17.

    O dia 17 de julho era o 60º aniversário de Merkel. Quando os 650 convidados de sua festa começaram a chegar à elegante Konrad Adenauer House, no centro de Berlim, surgiu a notícia, vinda da Ucrânia, de que um Boeing 777 da Malaysia Airlines havia caído, provavelmente depois de atingido por um míssil.

    Porque o voo ia de Amsterdã para Kuala Lumpur, alemães -e muitos outros europeus - estavam certamente entre os 298 passageiros e tripulantes presumivelmente mortos.

    Merkel divulgou um comunicado expressando choque e exigindo uma completa investigação. Um dos convidados da festa se lembra de Merkel ter falado pouco sobre o desastre. "A chanceler não gosta de falar sobre qualquer coisa antes de estar certa dos fatos. Mas ela ficou abalada. Foi horrendo".

    Em Washington, Obama foi informado a respeito da queda por Putin. Perto do fim de uma conversa telefônica cujo objetivo era debater as sanções impostas pelos Estados Unidos e União Europeia um dia antes, Putin mencionou informações sobre a "queda" de um avião no leste da Ucrânia. Não houve referência à possibilidade de que o aparelho tivesse sido abatido.

    Mas pelo final do dia, os serviços de inteligência estavam apontando para os rebeldes do leste da Ucrânia como responsáveis pela derrubada do voo MH17, com um míssil antiaéreo Buk fornecido pela Rússia. Eles aparentemente confundiram o jato de passageiros com um avião militar ucraniano.

    Discursando em Detroit, o vice-presidente Joe Biden, dos Estados Unidos, disse que o Boeing "foi abatido, não foi um acidente. Foi derrubado do céu por um míssil".

    UNIÃO

    A queda do MH17 foi um ponto de inflexão, despertando brutalmente o público do Ocidente para o grau de violência que os combates no leste da Ucrânia estavam apresentando - ou, nas palavras de um importante funcionário do governo norte-americano, para "o lado completamente Mad Max da coisa".

    O que parecia um conflito de baixa intensidade, circunscrito, se tornou uma guerra real, capaz de custar as vidas de inocentes que viviam a centenas ou milhares de quilômetros da área em disputa.

    Mas o perigo de um incidente como esse vinha crescendo há semanas - em parte porque as forças ucranianas haviam conquistado vantagem militar sobre os rebeldes. Um cessar-fogo de 10 dias anunciado por Poroshenko havia sido repetidamente violado, e foi abandonado em 1º de julho.

    Dias mais tarde, as forças ucranianas retomaram SlavIansk, o reduto militar dos rebeldes. A Rússia havia começado a enviar armas pesadas para o lado ucraniano da fronteira - o que incluía mísseis antiaéreos para enfraquecer a Força Aérea ucraniana.

    À medida que as provas de que o lançador do míssil Buk havia sido fornecido pela Rússia se solidificavam, ficava mais e mais claro que o conflito havia se tornado uma guerra de prepostos entre a Rússia e a Ucrânia, ou quem sabe entre a Rússia e o Ocidente.

    Alguns diplomatas ocidentais acreditavam que o incidente pudesse oferecer a Putin uma oportunidade salvadora para abandonar o conflito.

    "[As pessoas imaginavam] que talvez houvesse uma chance de [Moscou ver] a situação escapar ao controle, e com isso começar a remover suas armas de lá", disse um ministro do Exterior europeu. "Foi uma clara surpresa que eles continuassem a se armar, que não tenham recuado".

    Merkel ficou horrorizada com os relatórios sobre o local da queda, com corpos sendo saqueados e rebeldes negando acesso aos investigadores. "A chanceler decidiu que era preciso enviar um sinal claro, depois que um avião civil foi abatido", disse Philip Missfelder, o porta-voz legislativo da União Democrata Cristã, alemã, para assuntos internacionais.

    "Tínhamos a sensação, na Alemanha, de que a morte de civis fazia diferença qualitativa".

    Putin sumiu do mapa. No sábado, 19 de julho, Merkel se tornou a primeira líder ocidental a falar com ele depois da queda, insistindo em que os separatistas ajudassem na recuperação de corpos e permitissem uma investigação. Quando ele protestou, como tantas vezes no passado, que não tinha controle sobre os rebeldes, ela alertou que a inação teria consequências econômicas.

    Merkel também conversou com Obama. Ela compreendia que não estava claro que Putin fosse responsável pelo disparo do míssil. Mas ao não isolar e proteger o local da queda "as autoridades russas assumiram um risco", disse um observador próximo à chanceler, em Berlim.

    No domingo, os Estados Unidos já confiavam o bastante nas informações de que dispunham para oferecer um relato detalhado sobre o que acreditavam ter acontecido com o voo MH17. O secretário de Estado John Kerry anunciou que os Estados Unidos conheciam a trajetória do míssil e sabiam que ele tinha se originado de território controlado pelos separatistas.

    Horas depois, Putin fez sua primeira aparição pública desde a derrubada do avião - em um vídeo postado no site do Kremlin à 1h40min, horário de Moscou. Exibindo olheiras e uma pele suarenta, Putin falou da "terrível tragédia", mas não admitiu qualquer responsabilidade da parte dos rebeldes ou da Rússia.

    Em lugar disso, deu a entender que a responsabilidade moral cabia a Kiev, depois do cessar-fogo de junho ter sido cancelado. "Acredito que se as operações militares não tivessem sido reiniciadas no leste da Ucrânia... essa tragédia poderia ter sido evitada".

    Funcionários do governos ocidentais que esperavam que Moscou tentasse acalmar as tensões ficaram decepcionados. O Ministério da Defesa russo apresentou uma narrativa completamente distinta da ocidental, alegando que um radar russo havia registrado a presença de um caça ucraniano não muito longe do avião de passageiros, pouco antes da queda.

    Alguns diplomatas ocidentais veteranos se lembraram da resposta de Moscou em 1983, quando um caça soviético derrubou um jato de passageiros sul-coreano que havia invadido o espaço aéreo da Rússia. "Era a mesma tática. Mentiras, tentar causar confusão", disse um deles.

    Mas o caso do MH 17 aconteceu na era dos smartphones e da mídia social. Não demoraram a surgir online fotos e vídeos de um lançador de mísseis Buk chegando ao leste da Ucrânia, e depois partindo com um míssil a menos. Muitas das conclusões iniciais foram confirmadas pela investigação oficial.

    Depois de meses de propaganda das autoridades russas apresentando uma versão completamente diferente para a crise ucraniana, as autoridades dos Estados Unidos sentiam estar envolvidas em uma corrida para divulgar rapidamente suas informações sobre o MH17. "Os russos não pareceram críveis. Foram derrotados", diz um importante funcionário de Washington.

    Alguns funcionários do governo russo e analistas ocidentais simpáticos à Rússia dizem que a pressa em acusar foi um erro de cálculo do Ocidente. Perguntado por que Putin não fez do caso MH17 uma oportunidade de reconciliação com o Ocidente, um antigo funcionário importante do Kremlin disse que "porque ele se sentiu insultado. Reagiu emocionalmente. Porque o lado de vocês se pronunciou antes que as coisas estivessem claras, acusando-o de toda espécie de coisa".

    Ninguém fora da Kremlin sabe se algum dia existiu possibilidade real de que Putin adotasse abordagem diferente. O que fica claro, porém, é que a indignação quanto ao MH17 deu ao Ocidente um novo senso de unidade.

    A União Europeia e os Estados Unidos tomaram como alvo porções diferentes da economia russa, impondo sanções a bancos e companhias de petróleo estatais. Em companhia da inesperada queda nos preços do petróleo, isso exacerbou a crise financeira russa. A "atmosfera mudou fundamentalmente", disse um ministro do Exterior da União Europeia.

    Durante uma reunião sobre as sanções, Radoslaw Sikorski, o belicoso presidente do Legislativo polonês, disse a um colega que "parece que só temos [críticos da Rússia] aqui. Nem precisei dizer nada. Eles disseram tudo que pretendíamos".

    Mas Putin logo ofereceria sua resposta.

    GUERRA

    Nos dias próximos ao aniversário da independência ucraniana, em 24 de agosto, três grupos de batalha operacionais do Exército russo, com um total de quatro mil soldados, cruzaram a fronteira, com tanques, veículos blindados de transporte e armas pesadas, tudo isso sem identificação, dizem autoridades ocidentais.

    Forças especiais russas e agentes dos serviços de inteligência do país estavam ativos no leste da Ucrânia desde que os rebeldes pró-russos começaram a capturar cidades, em abril, dizem Kiev e representantes dos serviços de informações ocidentais. Mas a chegada de forças regulares russas marcou uma perigosa escalada.

    "A essa altura já não estamos mais falando de uma operação de combate ao terrorismo", o termo empregado por Kiev para definir sua luta contra os separatistas, diz um assessor de Poroshenko. "Estávamos em guerra com a Rússia".

    Os governos ocidentais enfrentam dificuldade para definir quais são os objetivos de Putin. Ele deseja restaurar a Novorossiya, o território à margem do Mar Negro capturado por Catarina, a Grande, que se estendia de Donetsk a Odessa? Está determinado a romper a aliança da Otan? Qualquer que seja seu objetivo, uma coisa se tornou clara em agosto: Putin estava determinado a não "perder", na Ucrânia.

    As autoridades ocidentais temiam uma retaliação daquele tipo havia semanas, já que as forças ucranianas continuavam a ganhar vantagem sobre os rebeldes. Informações de que os rebeldes estavam se posicionando perto de jardins de infância e hospitais provocaram um telefonema de advertência a Poroshenko por Biden, o contato mais frequente dele no governo dos Estados Unidos.

    "[Houve apelos] do vice-presidente de que não existia solução militar, e que era preciso cuidado quanto a fazer coisas que poderiam provocar resposta russa", diz um funcionário da Casa Branca. "Nossa avaliação era a de que Putin não permitiria a derrota dos separatistas".

    Merkel ecoou a mensagem. "Ela estava tentando contê-lo e impedir uma reação militar", diz uma pessoa próxima à chanceler. "Estava dizendo que não deveríamos subestimar a Rússia e sua possível reação".

    Mas havia cisões nos Estados Unidos e na Europa quanto à extensão da campanha militar que a Ucrânia poderia realizar. "Algumas pessoas diziam que, se as cidades de Donetsk ou Lugansk caíssem, isso provocaria um ataque maciço por Putin, e os ucranianos jamais se recuperariam dele", afirmou o funcionário citado acima.

    "Outros diziam que eles deveriam tomar uma dessas cidades e pedir a paz, para provar a Putin que ele não tem como vencer".

    Por fim, as forças russas entraram no país antes que os ucranianos conseguissem retomar qualquer das cidades -e rapidamente viraram o jogo. As forças ucranianas eram mais disciplinadas e tinham melhores armas que os rebeldes. Mas não eram páreo para as tropas russas, dotadas de armamento pesado.

    As armas russas incluíam foguetes Uragan, que podem disparar munição de fragmentação contra um alvo a até 35 quilômetros de distância, com alta precisão. Os soldados ucranianos "nem viam o inimigo", diz o assessor de Poroshenko. "Era como um moedor de carne".

    Com a carnificina crescendo, o presidente da Ucrânia compreendeu que ele não tinha escolha a não ser pressionar por um cessar-fogo.

    Reportagem de NEIL BUCKLEY, STEFAN WAGSTYL, PETER SPIEGEL, ROMAN OLEARCHYK, KATHRIN HILLE, SAM JONES, ROULA KHALAF, GEOFF DYER e JAMES POLITI

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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