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    Libéria tenta voltar à normalidade após epidemia de ebola

    NORIMITSU ONISHI
    DO "NEW YORK TIMES"
    EM MONRÓVIA, NA LIBÉRIA

    07/02/2015 02h00

    Depois da epidemia de ebola mais mortal da história, a vida começa aos poucos a voltar ao normal.

    No auge da epidemia, liberianos morriam entre as paredes azuis da escola primária Nathaniel V. Massaquoi, cujas salas de aula foram convertidas em enfermarias. O ensino havia sido suspenso em todo o país, e as crianças ficaram encerradas em casa para se proteger.

    Agora os pais estão voltando à escola, não para visitar seus familiares doentes, mas levando seus filhos irrequietos pela mão para se matricularem para o início das aulas, num ano letivo atrasado e encurtado.

    Florence Page, 11, correu à frente de sua mãe, Mabel Togba, 42, que fez uma pausa desconfiada para olhar pelo portão fechado com cadeado do prédio da escola.

    "Ainda não nos disseram que o país está livre do ebola, então ainda tenho medo", disse. "Mas é melhor trazer meus filhos para a escola do que deixá-los em casa sem nada para fazer."

    John Moore/Getty Images
    Praia de Monróvia, na Libéria; aos poucos, país volta à normalidade após surto de ebola
    Praia de Monróvia, na Libéria; aos poucos, país volta à normalidade após surto de ebola

    Na Libéria, onde há poucos meses os mortos se espalhavam pelas ruas, hoje os novos casos de ebola são contados nas mãos, segundo a Organização Mundial de Saúde. Em Serra Leoa e Guiné, os outros dois países que faziam parte da zona crítica da doença, os novos casos diminuíram muito, chegando a menos de cem em uma semana no final de janeiro -número que não era visto na região desde junho.

    Com um vírus tão letal quanto o ebola, as autoridades avisam que a epidemia só terá acabado quando os casos chegarem a zero nos três países.

    Mas, depois de quase 9.000 mortes pela doença, a OMS anunciou que seu objetivo agora é pôr fim à epidemia de ebola, não apenas frear sua difusão.

    Aqui em Monróvia, capital da Libéria, as ambulâncias e os veículos de recolhimento de corpos, que antes passavam pelas ruas a toda hora, agora são vistos apenas ocasionalmente.

    Partidas de futebol são disputadas nos fins de semana. As pessoas se cumprimentam com apertos de mão, sentam juntas em táxis e se tocam quando conversam, à medida que o medo do vírus diminui e as coisas retornam ao seu ritmo normal. "Antes tínhamos medo de tocar em nossos amigos", falou Patrick Chea, 19, pondo a mão na cabeça de Sonnie Kollie, uma menina de 16 -que imediatamente lhe deu um soco brincalhão no ombro.

    Especialistas tentam entender como o vírus, que desafiou as previsões dos maiores pesquisadores mundiais sobre doenças contagiosas, parece estar se extinguindo. Em setembro, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA projetaram que até 20 de janeiro a epidemia poderia chegar a 1,4 milhão de casos apenas na Libéria e em Serra Leoa. Mas, até essa data, haviam sido registrados apenas 21.797 casos nos três países.

    Dominique Faget/AFP
    Trabalhadores de saúde vestem roupas de proteção em área contaminada de hospital de Monróvia, em setembro
    Trabalhadores vestem roupas de proteção em área contaminada de hospital de Monróvia, em setembro

    Muitas pessoas destacaram o papel da ajuda dada pelos EUA e pelas organizações internacionais, mas há evidências de que a maior mudança é fruto da ação da própria população.

    "O importante foi como a sociedade modificou seu comportamento e com que rapidez o fez", comentou David Nabarro, enviado especial das Nações Unidas para o ebola.

    Quando o ebola chegou a bairros densamente povoados de Monróvia, no verão, o impacto foi devastador. Centenas de novos casos surgiram no país a cada semana, os hospitais ficavam superlotados ou entravam em colapso e doentes se espalhavam pelas ruas.

    Foram formados grupos voluntários de vigilância contra o ebola, geralmente comandados por líderes comunitários locais e jovens instruídos, aproveitando um longo histórico de organização de base para sobreviver à guerra, à miséria e ao descaso dos governos.

    Os grupos conscientizaram suas comunidades sobre o ebola, uma doença até então desconhecida nesta parte da África, e instalaram estações de lavagem de mãos. Eles mantiveram registros de doentes e mortes, colocaram famílias em quarentena e restringiram as visitas de pessoas de fora. À medida que os doentes começaram a ser recusados nos centros de tratamento, devido à falta de leitos, as pessoas começaram a se proteger melhor dentro de suas casas, cobrindo braços e mãos com saquinhos de compras de plástico quando cuidavam de seus familiares doentes.

    Em meados de outubro, os novos casos da doença na Libéria tinham caído de centenas para dezenas por semana. "Surgiram heróis em todas as comunidades", disse o médico liberiano Mosoka Fallah, epidemiologista formado em Harvard. "As forças-tarefa de voluntários talvez sejam a maior razão da queda no número de casos em outubro."

    A resposta internacional também foi crucial, disseram autoridades e líderes comunitários liberianos, ampliando as opções de diagnóstico e tratamento. A visão do mundo vindo em socorro foi um grande incentivo psicológico para a população.

    "Foi a primeira vez na história de nosso país que vimos militares americanos em campo aqui", disse a presidente da Libéria, Ellen Johnson Sirleaf. "Você não pode imaginar a diferença que isso fez para a esperança das pessoas."

    Em Serra Leoa, a população também passou a cuidar de muitas coisas por conta própria. "A cavalaria não ia vir nos socorrer", explicou David Mandu Farley Keili-Coomber, chefe da região tribal de Mandu, no leste do país. "Nós mesmos éramos a cavalaria."

    Pascal Guyot - 29.set.2014/AFP
    Membros da Cruz Vermelha colocam roupa de proteção contra o ebola em Monróvia, em setembro de 2014
    Membros da Cruz Vermelha colocam roupa de proteção contra o ebola em Monróvia, em setembro

    Na Guiné, onde a epidemia se concentrou em áreas rurais, as transformações têm sido lentas e a resistência às novas medidas continua, alimentada por toda uma história de tensões com o governo. Meses se passaram até alguns povoados começarem a permitir a entrada de profissionais de saúde -muitos só o fizeram após muitas mortes.

    Mas agora, quando os casos de ebola na Libéria podem ser contados nos dedos de uma mão, o fim da epidemia parece estar à vista. "O sol voltou a brilhar", disse a embaixadora americana na Libéria, Deborah R. Malac.

    Ela esteve recentemente em Barkedu, uma das comunidades da Libéria rural mais fortemente atingidas pelo ebola. Cidade de 8.000 habitantes, Barkedu sofreu mais de mil mortes. Famílias inteiras foram exterminadas pela doença que varreu a cidade, cuja população majoritariamente muçulmana obedecia tradições locais como a lavagem dos corpos dos mortos.

    Mas o ebola não é visto em Barkedu há mais de 90 dias, segundo Malac. E a bolha protetora que os liberianos ergueram à sua volta para evitar tocar outras pessoas e possivelmente ser contaminadas se dissolveu. "As mulheres voltaram a dançar", disse a embaixadora. "Tudo estava mais normal, e eu nem fiquei muito preocupada com a ideia de alguém encostar em mim."

    Na escola secundária Mary Brownell Junior, em Monróvia, muitos pais matricularam seus filhos outra vez, apesar de ainda sentirem algum medo do ebola.

    A expectativa é que as aulas voltem neste mês. Joseph Garway, 46, veio matricular um filho. Ele tem três filhos, mas agora cuida também dos quatro filhos de um primo que morreu de ebola em agosto passado, com sua mulher. "Estamos preocupados, mas mesmo assim queremos que nossos filhos voltem às aulas", disse Garway.

    Felicia Koneh, que vende biscoitos amanteigados na rua, viu suas vendas diárias cair de US$ 16 para US$ 6 no auge da epidemia. Mas, nos últimos dois meses, elas chegaram a US$ 12. "Aos pouquinhos", disse, "as coisas estão voltando a ser como antes."

    Pascal Guyot - 27.set.2014/AFP
    Enfermeira caminha com criança contaminada pelo ebola em centro de tratamento em Monróvia, em setembro
    Enfermeira caminha com criança com ebola em centro de tratamento em Monróvia, em setembro
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