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    Refugiados relatam mundo de escravidão e morte sob o Boko Haram

    ADAM NOSSITER
    DE "THE NEW YORK TIMES", EM MAIDUGURI (NIGÉRIA)

    06/02/2015 15h43

    Eles chegaram em plena madrugada, com os rostos cobertos, viajando em picapes e motos, gritando "Allahu akbar" e disparando suas armas.

    "Primeiro vieram os tiros, e depois as decapitações", disse Hussaini Bukar, 25, que fugiu depois que os combatentes do Boko Haram invadiram sua cidade no norte da Nigéria. "Perguntavam onde estavam os infiéis que viviam entre nós".

    Mulheres e meninas são aprisionadas sistematicamente em algumas casas, e ficam detidas nelas até que o Boko Haram remova aquelas que sejam escolhidas para "casamento" ou outros propósitos.

    "Eles estavam estacionando" - prendendo - "meninas jovens e crianças pequenas, estacionando-as nas casas maiores", disse Bawa Safiya Umar, 45, cujo filho de 17 anos foi morto quando sua cidade caiu para o Boko Haram. "Estacionaram 450 meninas em quatro casas".

    Os refugiados que acorrem a Maiduguri, uma capital provincial, descrevem um mundo sombrio de punições, raptos e mortes, sob o domínio do Boko Haram, no Estado islâmico em miniatura que o grupo impôs em porções do norte da Nigéria.

    Sessões de oração coletiva em campo aberto, soldados recrutados por intimidação e distribuições ocasionais de comida roubada são os instrumentos do grupo em seus contatos com a população, dizem os fugitivos.

    Casamentos forçados, escravidão e aprisionamento são instituições vitais para o modo de vida do Boko Haram. E execuções realizadas sem cerimônia - a tiros ou por decapitação - são a punição dos homens que se recusam a aderir.

    "Eles amarram as mãos das pessoas por trás das costas, dizem 'Allahu akbar' e cortam suas cabeças", conta Shuaibu Alhaji Kolo, 22, relatando a rápida execução de homens capturados em meio aos gritos de "Deus é grande" dos militantes.

    O Boko Haram está aterrorizando a área em torno de Maiduguru, e até 400 mil pessoas podem ter fugido para esta cidade sob precário controle do governo.

    O perigo a que esses refugiados escaparam agora se aproxima da cidade, que sofreu três ataques do Boko Haram na semana passada e onde se ouve explosões a cada noite. Isso oferece um raro vislumbre sobre a distópica visão de domínio islâmico que o grupo pretende impor.

    "Via-se corpos por toda parte", disse Yagana Kabani, 42, que ficou na cidade de Bama por três meses depois que ela foi conquistada pelo Boko Haram. "Mataram muita gente. Roubavam o dinheiro dessas pessoas, dizendo que era dinheiro de infiéis".

    A maioria dos refugiados que agora se abrigam em 16 campos espalhados por Maiduguri, muitas vezes sobrevivendo com pouca comida, em barracas improvisadas com ripas e sacos vazios de cereais, fugiu para a região semidesértica quando os extremistas islâmicos invadiram suas cidades.

    No começo, havia terror generalizado, com ações de casa em casa, dirigidas principalmente aos jovens suspeitos de oposição aos islâmicos.

    "Eles instruíam a pessoa a deitar no chão e atiravam em sua cabeça", disse Babakar Karami Issa, 25, que se escondeu por duas semanas na cidade de Gamboru Ngala depois que ela foi ocupada, no ano passado. Esta semana, as forças armadas do Chade anunciaram que haviam retomado a cidade dos militantes.

    "Se eles viam uma porta fechada, perguntavam onde estavam os homens", recorda Alhaji Ali, 28, que escapou da cidade de Damboa.

    Alguns dos refugiados se mantiveram por semanas ou meses em suas cidades, muitas vezes se escondendo da melhor maneira possível ou buscando oportunidades de escapar. Os militantes, muitos dos quais ostentando longas barbas e cabelos desarranjados, e alguns envoltos em turbantes que revelam apenas seus olhos, alternavam momentos de arbitrariedade, brutalidade e proselitismo, os refugiados recordam.

    Em outro caso, combatentes do Boko Haram retornaram do campo de batalha e se enfureceram ao ver homens idosos conversando pacificamente à sombra de uma árvore, e por isso simplesmente abriram fogo contra eles, conta Hauwa Abubakar, 24, que viveu por seis semanas em Bama depois que a cidade foi ocupada pelo Boko Haram.

    "Eles estavam zangados", ela disse. "E os mataram".

    Depois de invadir as cidades, o Boko Haram inicialmente tentava conquistar a adesão dos moradores, por meios tanto materiais quanto espirituais. Bandeiras pretas eram hasteadas nos postes de luz, e o proselitismo começava.

    "Eles começaram a distribuir propriedades para que as pessoas os seguissem", disse Abubakar, contando que o Boko Haram distribuía biscoitos, arroz e espaguete saqueados do mercado de Bama aos moradores da cidade.

    "Estavam tentando ganhar a simpatia dos moradores", disse Issa sobre táticas parecidas usadas pelo grupo em Gamboru Ngala.

    Lá, depois de tomar a cidade e "executar pessoas a torto e a direito", recordou Sato Modu, 33, "o Boko Haram começou a dizer que não havia motivo para medo, e que nos dariam comida e roupas".

    Exortações semelhantes foram feitas em outras cidades. Em Gamboru, "eles disseram aos civis que estavam lá para defendê-los", recordou Mallam Bukar Ali, 29. "Perguntavam às pessoas por que elas não os estavam seguindo".

    A população recebia ordens de se unir aos militantes em imensas sessões de oração a céu aberto. Em Damboa, "eles pregavam diante do palácio do emir, aos idosos", disse Issa Bulama, 26. "Diziam aos velhos que deviam instruir os filhos deles a voltar e seguir as ordens do movimento, ou os matariam".

    Em Bama, o povo era chamado pelo Boko Haram às orações três vezes por dia. Também houve descrições de patrulhas do Boko Haram que saíam da cidade em busca dos jovens fugitivos. Em alguns casos, se eles não tivessem sido executados logo depois do primeiro ataque, os homens recebiam ordens de se unir à causa do movimento.

    Mesmo com a participação de soldados de países vizinhos nos combates, milhares de pessoas continuam a viver sob o domínio do Boko Haram -muitíssimo a contragosto, os refugiados dizem. "Ninguém os ajudou", disse Bulama, que conseguiu fugir de Damboa. "Todo mundo os odeia. Nós os odiamos".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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