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    Leia prefácio à edição brasileira de novo livro do criador do WikiLeaks

    09/02/2015 02h00

    Leia abaixo a íntegra do prefácio à edição brasileira de "Quando o Google encontrou o WikiLeaks", novo livro do criador do WikiLeaks, Julian Assange.

    A obra será lançada no Brasil na próxima semana pela Boitempo.

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    Prefácio à edição brasileira

    Este livro tem dois objetivos. Por um lado, os ensaios iniciais apresentam uma crítica à política da internet comercial. Por outro, a discussão que se segue tenta descrever uma possível alternativa. Deixarei o último falar por si, mas gostaria de fazer, para os leitores brasileiros, um comentário sobre o primeiro.

    As críticas contidas em "Quando o Google encontrou o WikiLeaks" claramente almejam o Google. Em parte, isso se deve às intrigas ocorridas entre o Google e o WikiLeaks e a consequente disponibilidade de provas. No entanto, algumas pessoas acham isso injusto, porque o Google é apenas uma das muitas grandes empresas norte-americanas da internet cujo posicionamento de mercado tem possibilitado um poder político inaceitável. Acham que escolhi o Google com base em uma forma de discriminação.

    É bem verdade que o Google não é a única empresa que deixa de praticar o lema "Não seja mau". No entanto, apesar de o Facebook e outras empresas merecerem as próprias críticas, o Google exemplifica os terríveis perigos da internet corporativa. Desde muito cedo, seus fundadores perceberam que o processamento de informações em grande escala os colocaria no centro de tudo. A missão ideológica do Google sempre foi devorar dados só por devorar dados. Essa missão e o considerável nível de genialidade aplicado em sua execução deram imensas vantagens estratégicas para a empresa. Hoje em dia, o Google tem seus tentáculos sobre todas as mais importantes fontes de dados de usuários individuais da internet que a empresa consegue agarrar. Desde 2013, as ambições da empresa e de seus líderes assumiram uma grandiosidade delirante e, mesmo assim, muitas dessas ambições estão, considerando o estado atual da tecnologia, ao alcance do Google, dentro dos limites das possibilidades. O Google se transformou na dissimulada potência hegemônica da internet comercial.

    Por extensão, uma crítica contra o Google pode representar uma crítica contra a internet comercial em geral. É um exemplo do tipo de mentalidade que nós, como cidadãos da internet, deveríamos aplicar a todos os atores corporativos on-line. Comentários sobre a política da internet têm se mantido rudimentares e escassos por tempo demais. O supremo aparato de relações públicas de corporações como o Google aliciou desde o início quase toda a imprensa do setor da tecnologia. Em consequência, o jornalismo especializado tem se concentrado em novidades tecnológicas e novos e empolgantes "serviços", voltando-se apenas aos observadores e participantes da "indústria", ignorando as consequências de algumas dessas novas tecnologias. Nos raros casos em que a política entra em pauta, as análises são simplistas e infantis: evangelistas da tecnologia instalados na corte imperial discursando ao mundo sobre todas as maneiras com que as empresas de internet norte-americanas oferecem novas "liberdades" temporárias e altamente qualificadas aos usuários de internet do hemisfério sul do planeta.

    Esse discurso precisa se espalhar rapidamente. Megacorporações da internet têm recursos diferentes de megacorporações como a Boeing, a Goldman&Sachs, a Chevron ou a Monsanto: seu poder provém de deter a propriedade da infraestrutura das nossas comunicações. No entanto, em sua essência, as megacorporações da internet não são fundamentalmente diferentes. Sua constituição jurídica é praticamente a mesma, seu aparato corporativo só difere um pouco e todas elas vivem no mesmo habitat: o capitalismo globalizado do século XXI. Com seu crescimento, essas megacorporações acumulam, por direito próprio, poder suficiente para participar do grande jogo da geopolítica global. Em outras palavras, elas se tornam mecanismos viáveis para a operação do império. Uma corporação norte-americana da internet grande o suficiente representa uma ameaça potencial para a soberania e a segurança de países como o Brasil, a Índia, a Rússia ou o Irã no mesmo patamar que uma companhia de energia ou uma fabricante de armamentos norte-americana. Ou, aliás, um órgão do governo dos Estados Unidos.

    Em suma, essa é a parte da crítica que acredito ser mais importante para os leitores brasileiros e da América Latina. Nos últimos meses, após o caso Edward Snowden, muitos brasileiros passaram a entender, melhor que a população de outros países, a intensa importância geopolítica da dominância do governo norte-americano sobre as fontes e os fluxos de informação na internet. No entanto, a posição igualmente dominante de corporações norte-americanas, como o Google, embora menos fácil de visualizar, não deve ser ignorada. À medida que o Brasil tenta desenvolver alternativas infraestruturais aos fluxos de dados interceptados pelos Estados Unidos para minimizar a vulnerabilidade do país à espionagem por parte do governo norte-americano, os brasileiros devem receber com cautela corporações norte-americanas que chegam trazendo presentes.

    Os brasileiros devem se conscientizar de que, quando usam os "serviços" do Google, estão sendo aliciados para entrar em um relacionamento com uma megacorporação estrangeira global muitos milhões de vezes mais poderosa do que eles e sujeita a poucos mecanismos de prestação de contas. Quando uma parcela significativa da internet brasileira entrar nesse relacionamento, o Google passará a competir agressivamente com atores brasileiros mais legítimos no país para conquistar uma influência maior sobre o público brasileiro. Como este livro busca mostrar, as ações do Google têm muitos interesses de política externa em comum com o governo norte-americano. E os interesses do Google não estão alinhados com os interesses da política brasileira.

    Assim, o Google deve ser identificado como a potência estrangeira que é e ser tratado de acordo, com alternativas nacionais, se possível, e contramedidas legislativas, se necessário.

    Julian Assange

    Outubro de 2014

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