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    Como nasceu e morreu a primeira tentativa de paz na Ucrânia

    DO "FINANCIAL TIMES"

    09/02/2015 16h44

    Era o final de agosto, e o tempo estava se esgotando para o presidente da Ucrânia, Petro Poroshenko: rebeldes separatistas respaldados por milhares de soldados russos fustigavam as forças ucranianas no leste de seu país. Poroshenko precisava que Vladimir Putin concordasse com um cessar-fogo, e já. Então jogou o que pensou ser seu trunfo.

    Poroshenko disse ao presidente russo que, se não houvesse cessar-fogo, sua equipe postaria na internet centenas de "dog tags" (plaquetas de identificação) tomadas de soldados russos capturados ou mortos na Ucrânia. E contatariam as esposas e mães dos russos para lhes explicar onde estavam seus maridos e filhos.

    Foi uma ameaça potente na guerra de propaganda entre Leste e Oeste. Putin estava negando ao mundo que soldados russos regulares tivessem posto os pés na Ucrânia. O líder russo então começou a modificar sua posição. Alguns dias mais tarde, Poroshenko chegou a uma cúpula da Otan no País de Gales com um esboço de acordo de cessar-fogo. O documento seria assinado em 24 horas.

    Poroshenko contou a história das "dog tags" a vários funcionários ocidentais seniores, embora autoridades russas não a confirmem. Alguns acham que ela reflete uma ousadia da parte de um político bilionário e ansioso ao extremo para impedir que seu país fosse dilacerado.

    Assinado na capital de Belarus em 5 de setembro, o acordo de Minsk permitiu a todos os lados fazer de conta, por algum tempo, que a crise da Ucrânia poderia ser resolvida pela diplomacia. Mas, com combates letais tendo recomeçado nas últimas semanas, o documento passou a representar mais um fracasso em frear as ambições da Rússia na Ucrânia.

    Bulent Kilic - 22 jul.2014/AFP
    Corpos de soldados da ucranianos após combate na periferia de Donetsk, cidade no leste do país
    Corpos de soldados da ucranianos após combate na periferia de Donetsk, cidade no leste do país

    ENCURRALADO

    Na luta pelo controle do país, Poroshenko é o homem que está no meio, preso entre a agressão russa, de um lado, e a recusa do Ocidente em ajudá-lo a reagir, do outro. Apelidado de "Rei do Chocolate" da Ucrânia devido à fortuna de US$ 1,3 bilhão que acumulou com sua empresa de chocolates Roshen, Poroshenko não é necessariamente o presidente livre de qualquer mácula que teriam desejado os manifestantes que saíram às ruas do centro de Kiev no inverno passado para protestar contra um sistema corrupto, dominado por oligarcas.

    Ele próprio foi oligarca. Mas foi o único oligarca a posicionar-se ao lado dos manifestantes no Maidan, e sua emissora de TV Canal 5 deu apoio firme a eles. Além disso, Poroshenko é uma figura política experiente, ex-ministro do Exterior e ministro da Economia que participou do governo "laranja", após a revolução ucraniana pró-democracia de 2004, e também, por pouco tempo, do governo do presidente pró-Rússia Viktor Yanukovich.

    Poroshenko está presente no Oriente e no Ocidente, com empresas na Rússia e também na Ucrânia. Durante sua campanha presidencial, em maio, ele descreveu seus vínculos com a Rússia como uma vantagem. "É claro que conheço Putin bem", disse. "Tenho muita experiência de falar com ele. Posso confirmar que essas discussões nem sempre são fáceis." Reservadamente, funcionários governamentais em Moscou dizem que Poroshenko é alguém com quem sentem que conseguem dialogar.

    Além de ser capaz de falar com o Kremlin, Poroshenko é o primeiro presidente ucraniano a falar inglês com fluência e ficar à vontade com a diplomacia ocidental. Em alguns momentos desta crise, o líder robusto e de fala suave conquistou simpatias no núcleo decisório europeu.

    Durante uma cúpula de chefes de Estado da União Europeia, ele se demorou numa antessala fechada a visitantes para conseguir falar com Angela Merkel quando ela saiu para consultar assessores. Sua persistência rendeu frutos, convencendo a chanceler alemã a usar de linguagem mais dura na parte do comunicado da cúpula referente à crise da Ucrânia. "Houve resmungos, mas é Merkel, ela pode fazer o que quiser", disse um diplomata europeu. "Ela quis reforçar Poroshenko."

    Ocasionalmente, porém, Poroshenko tem ido longe demais. Num discurso emotivo feito perante uma sessão conjunta do Congresso dos EUA, em setembro, ele agradeceu Washington pela ajuda não letal dada às forças armadas da Ucrânia, que incluiu cobertores e óculos de visão noturna. Mas acrescentou em tom azedo: "Não se ganha uma guerra com cobertores". A Casa Branca, que se opõe à ideia de armar a Ucrânia, ficou furiosa. "Foi uma estupidez de Poroshenko", diz um funcionário americano.

    As conversas telefônicas de Poroshenko com Putin às vezes deixaram de ser comunicadas às autoridades americanas, alemãs e britânicas. "Foi preciso lembrar à equipe de Poroshenko: se vocês querem nossa ajuda, precisam garantir que sejamos plenamente informados sobre o que está acontecendo", diz um diplomata.

    Uma pessoa próxima a Poroshenko insiste que ele manteve autoridades da UE e dos EUA informados. Além disso, as bombardeou com telefonemas pedindo que "não dormissem" em relação à Ucrânia e tentando convencê-las a juntar-se a ele em negociações com a Rússia. Uma das mais importantes dessas reuniões aconteceu em 26 de agosto, quando os combates avançavam no leste da Ucrânia.

    Andrew Winning - 5.set.2014/Reuters
    Presidente da Ucrânia concede entrevista durante 2º dia de negociações de paz em Minsk, em setembro
    Presidente da Ucrânia concede entrevista durante 2º dia de negociações de paz em Minsk, em setembro

    AS EXIGÊNCIAS DE PUTIN

    De acordo com uma pessoa que esteve presente, o jantar em Minsk foi "um dos encontros mais surreais que já tive".

    Ao lado de Putin, Poroshenko e três comissários europeus, a lista de convidados incluía os envelhecidos líderes autoritários de Belarus e do Cazaquistão, Alexander Lukashenko e Nursultan Nazarbayev. Um funcionário dos EUA comentou, brincando, que a reunião foi "um bar de diplomacia internacional estilo 'Star Wars'".

    O tom foi definido por Lukashenko, com frequência descrito como "o último ditador da Europa". Durante o jantar, ele se gabou de um novo pão bielorrusso que não engorda e de melancias tão saborosas quanto as espanholas, mas com menos açúcar.

    Mais surreal ainda, contudo, foi o que ficou sem ser dito. Embora tanques russos tivessem começado a atravessar as fronteiras ucranianas, ninguém quis mencionar a guerra. Mesmo em encontros plenários anteriores, quando Poroshenko tentou falar dos combates, Putin manobrou as conversas para outra coisa: um acordo comercial.

    Já se tornara fácil esquecer que a crise da Ucrânia tinha sido desencadeada por planos da UE de fechar um acordo de livre comércio com Kiev. Para Putin, permitir que uma terra vista como berço da civilização russa entrasse na órbita europeia era impensável. Para a UE, os trunfos em jogo também eram altos: a Ucrânia era fundamental para seus planos de levar a democracia e os padrões europeus para mais ex-Estados soviéticos, por meio de seu programa "Parceria Oriental".

    De fato, era essa a razão ostensiva do encontro em Minsk: discutir como o acordo da Ucrânia com a UE poderia ser compatibilizado com a nascente "União Eurasiana" que Putin estava formando com Belarus e o Cazaquistão. O presidente russo tinha tentado por muito tempo convencer Kiev a fazer parte de seu grupo e viu a revolução ucraniana não apenas como conspiração ocidental mas também como um golpe forte contra suas perspectivas econômicas.

    Agora Putin tentaria novamente torpedear o acordo, que Poroshenko tinha assinado em junho, mas não ratificado. Ele insistiu em renegociar 2.340 linhas tarifárias, algo que poderia atrasar o pacto comercial em meses ou anos. O líder ucraniano ficou firme: os negociadores poderiam discutir mais, mas nada impediria o país de ratificar o acordo.

    Quando os outros convidados partiram, Poroshenko e Putin se retiraram para uma sala separada, onde teriam seu primeiro encontro a sós, cara a cara, como presidentes. De acordo com um funcionário presente em Minsk, Poroshenko começou por exigir que as tropas russas saíssem da Ucrânia. Putin apresentou sua muito ensaiada negação de que houvesse tropas russas no país. Então acrescentou, em tom ameaçador, que, se quisesse realmente invadir, contava com 1,2 milhão de soldados equipados com os armamentos mais sofisticados do mundo. Eles poderiam chegar a Kiev em dois dias -ou a Tallinn, Vilna, Riga e Bucareste, todas capitais de países da UE e da Otan.

    Apesar das ameaças, Poroshenko apresentou um plano de paz. Disse que, se Putin não gostasse do plano, o presidente russo deveria sugerir suas próprias ideias.

    Enquanto a matança no leste da Ucrânia continuava, nos dias seguintes, os dois líderes continuaram a conversar pelo telefone. De acordo com um diplomata ocidental, Poroshenko temeu que pudesse "ter que deixar a Presidência em dois dias" a não ser que conseguisse uma vitória, ou paz. Mas Putin também estava sob pressão, à medida que começaram a chegar à Rússia notícias de corpos de soldados russos retornando da Ucrânia -aumentando a força da ameaça de Poroshenko sobre as "dog tags". Em 3 de setembro, os dois homens acordaram as linhas gerais de um acordo.

    Anatolli Boiko - 22 jan. 2014/AFP
    Policiais entram em choque com manifestantes em praça de Kiev, na Ucrânia, em janeiro de 2014
    Policiais entram em choque com manifestantes em praça de Kiev, na Ucrânia, em janeiro de 2014

    O ENDOSSO DE OBAMA

    Na manhã seguinte, o presidente ucraniano chegou a uma cúpula da Otan em Cardiff, País de Gales, com uma surpresa: seu texto provisório de acordo de cessar-fogo. Ele o mostrou primeiro ao "Quinteto": o presidente americano, Barack Obama, Angela Merkel, o presidente francês, François Hollande, o premiê britânico, David Cameron, e o premiê da Itália, Matteo Renzi. Para intensificar as pressões sobre Moscou para que fechasse o acordo, Poroshenko disse aos líderes que o Ocidente deveria seguir adiante com novas sanções contra a Rússia. Mas a UE deveria ser mais flexível na implementação de seu acordo comercial com a Ucrânia, incluindo a renegociação das milhares de linhas tarifárias às quais Putin fazia objeção.

    Obama foi o primeiro a responder, segundo uma pessoa presente na sala. O acordo era algo que a Ucrânia queria ou que Putin queria? Poroshenko deixou claro que era ele quem buscava o acordo. Obama então se voltou a Merkel: se os ucranianos o querem, por que não? Ela concordou.

    Mas quando José Manuel Barroso, o presidente da Comissão Europeia, foi informado do plano, mais tarde, ficou incrédulo. Ele quis saber se Poroshenko compreendia plenamente as consequências de seu pedido. Afinal, o fato de seu predecessor, Yanukovich, não ter firmado o acordo com a UE foi o que tinha levado os manifestantes ucranianos à praça Maidan, em Kiev. Se o acordo não fosse ratificado, conforme o planejado "[receamos que] Poroshenko seria defenestrado, como aconteceu com Yanukovich", contou um funcionário que discutiu o assunto com Barroso no País de Gales.

    Ficou claro para muitos observadores que Obama queria um acordo de paz a qualquer custo. Aumentavam as pressões domésticas sobre ele em função da ascensão da facção Estado Islâmico no Iraque e na Síria. Autoridades americanas vinham telefonando a outras capitais antes mesmo da cúpula, em busca de algo que pudesse aplacar o Kremlin, para que Obama pudesse focar as atenções sobre o EI na reunião da Otan. "Recebi um telefonema também dos americanos, perguntando se não poderíamos oferecer algo aos russos, um símbolo", contou um funcionário que participou da cúpula europeia. "Eu disse a eles que não existe símbolo. É um presente muito grande mesmo."

    Barroso se manteve firme, e um plano de meio-termo foi esboçado. O Parlamento Europeu e o Rada (Parlamento) ucraniano ratificariam o acordo comercial em 16 de setembro. Mas as medidas que permitiriam acesso aberto de produtos da UE aos mercados da Ucrânia -o problema substantivo por trás do pedido de Putin de emendar as 2.340 linhas tarifárias-ficariam suspensas até 2016. (Um ministro russo aceitou essa solução e mais tarde foi fortemente repreendido pelo Kremlin.)

    Tudo estava pronto para que o cessar-fogo fosse assinado. Em 5 de setembro, enquanto os líderes da Otan participavam do segundo dia de sua cúpula, a mil milhas de distância, em Minsk, representantes de Kiev, Moscou e das duas "repúblicas populares" rebeldes do leste da Ucrânia assinaram o acordo de 12 pontos.

    O acordo deveria garantir autonomia considerável para as repúblicas rebeldes e, ao mesmo tempo, permitir que Poroshenko afirmasse ter preservado as fronteiras da Ucrânia. Em questão de horas, os combates começaram a diminuir. Mas nunca chegaram a cessar por completo.

    Andrey Borodulin - 7.fev.2015/AFP
    Soldado ucraniano é morto por forças separatistas na cidade de Vuglegirsk, na região de Donetsk
    Soldado ucraniano é morto por forças separatistas na cidade de Vuglegirsk, na região de Donetsk

    ACORDO FRACASSADO

    Qualquer otimismo suscitado pelo acordo de Minsk teria vida curta. A Rússia não implementou medidas chaves que permitiriam à Ucrânia garantir a segurança de suas fronteiras, e o apoio militar russo continua a atravessar a fronteira até hoje. Tentativas feitas cara a cara por Merkel e outros líderes, em Brisbane e Milão, para persuadir Putin a respeitar o acordo, fracassaram.

    Desde meados de janeiro, dezenas de civis foram mortos por bombardeios pesados no leste da Ucrânia, e, com os combates tendo quase voltado aos níveis de agosto passado, o acordo de Minsk praticamente virou letra morta.

    A escalada das hostilidades deixou as capitais ocidentais novamente perplexas quanto às motivações de Putin. Ele quer forçar o Ocidente a entrar em negociações mais amplas sobre questões como sua exigência de garantias de que a Ucrânia não ingresse na Otan? Ou está tentando gerar um "conflito congelado" no leste para desestabilizar o governo de Kiev? A intensificação dos combates também reavivou a discussão sobre o fornecimento de armas à Ucrânia, algo que pode solapar a unidade entre a União Europeia e os Estados Unidos.

    Enquanto isso, a economia russa entrou em espiral descendente, ferida pela queda dos preços do petróleo e pelas sanções. Esse fato pode, com o tempo, enfraquecer a capacidade de Putin de continuar a financiar ações militares na Ucrânia. Mas também pode convencê-lo a intensificar a ação militar, como foi feito logo após a derrubada do avião do voo MH17 da Malaysian Airlines, e usar de fervor patriótico para desviar a atenção dos russos da queda de seus padrões de vida. Os líderes ocidentais estão concluindo que a ruptura com a Rússia assinala uma mudança fundamental de rumo. Ecoando a Guerra Fria, diplomatas estão voltando a falar em "contenção".

    O fato de a crise não ter podido ser resolvida por vias diplomáticas até agora leva ao receio de que Putin pode simplesmente não querer uma solução. Um ex-embaixador alemão diz que, após meses de contatos com o líder russo, Angela Merkel chegou a uma conclusão triste.

    "Talvez Putin não esteja interessado em restaurar a ordem", diz o diplomata. "Talvez seus assessores lhe estejam dizendo que a Rússia se sairá melhor em um mundo sem ordem."

    Reportagem de NEIL BUCKLEY, STEFAN WAGSTYL, PETER SPIEGEL, ROMAN OLEARCHYK, KATHRIN HILLE, SAM JONES, ROULA KHALAF, GEOFF DYER e JAMES POLITI

    Tradução de CLARA ALLAIN

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