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    Área controlada por milícia islâmica no norte do Iraque vive 'pré-história'

    PATRÍCIA CAMPOS MELLO
    ENVIADA ESPECIAL A KIRKUK (IRAQUE)

    13/02/2015 02h00

    Desde que o Estado Islâmico invadiu Mossul, em 9 de junho de 2014, a cidade vive na Idade da Pedra, na opinião de quem vê tudo de dentro.

    "Mal temos água, luz ou comida; a cidade está na era pré-histórica", disse à Folha um historiador que vive em Mossul e mantém um blog sobre a vida sob o EI.

    Por medo de represálias dos islamistas, ele não se identifica, e deu entrevista por e-mail ao longo de dois meses, porque precisa circular pela cidade para conseguir sinal do celular. Seu blog é considerado autêntico por analistas iraquianos.

    Ele conta que os habitantes de Mossul precisam pagar uma taxa mensal de prestação de serviços ao EI: uma casa de dois andares paga 15.000 dinares, equivalente a R$ 40; uma casa térrea paga o equivalente a R$ 25.

    Só tem energia quem pagar o equivalente a R$ 17 por ampére entregue pelos "geradores privados". Mesmo pagando, só há luz entre 13h e 23h. "Água só temos por duas horas a cada dois dias."

    Dos cerca de 1,5 milhão de habitantes, 500 mil fugiram nos dois primeiros dias. Cristãos, yazidis, árabes xiitas, curdos e outras minorias deixaram a cidade, foram mortos ou executados. Só sobraram árabes sunitas.

    Mossul ficou isolada do mundo exterior quando o EI cortou as telecomunicações, em novembro. Agora, as pessoas ficam procurando desesperadamente locais onde ainda existe cobertura de telefone celular.

    Falta tudo: comida, roupa, combustível. Mas o caos econômico é o de menos. O pior é viver sob a interpretação ultraortodoxa da sharia.

    "Eu não posso conversar sobre filosofia, história ou política. Eu não confio em ninguém, podem me denunciar para o EI. Fumar é proibido. Música e filmes também."

    As mulheres são obrigadas a se cobrir inteiramente, incluindo olhos e mãos, e não podem sair desacompanhadas. Chegaram a proibir mulheres de comprar pepinos na feira, por causa do formato sugestivo, e de consumir sorvete, porque não havia na região na época de Maomé.

    Ninguém entra em Mossul. Nem as agências humanitárias como Médicos sem Fronteiras (MSF) e Cruz Vermelha.

    "Nós sempre falamos com todas as partes envolvidas nos conflitos -mas áreas dominadas pelo EI e a Somália são os únicos lugares do mundo em que não fazemos isso. Não dá", diz Fabio Forgione, chefe do MSF no Iraque.

    Cerca de 3.000 soldados iraquianos estão treinando para a operação batizada de "Libertação de Mossul", que terá auxílio das tropas curdas, os peshmergas. Eles terão apoio da coalizão internacional com ataques aéreos, já em curso, e pedem forças terrestres.

    O presidente americano, Barack Obama, enviou ao Congresso um pedido de autorização para uso de força contra o EI. A ideia é entrar na cidade até maio.

    Editoria de Arte/Folhapress

    SECTARISMO

    Mas nada disso vai derrotar o EI se não forem equacionadas as questões sectárias que permitiram a expansão do grupo terrorista.

    A maioria da população do Iraque é xiita. Quando o ditador sunita Saddam Hussein estava no poder, ele reprimia os xiitas. Depois da retirada americana em 2011, o ex-premiê Nouri al-Maliki, xiita, passou a perseguir sunitas.

    Descontentes, eles apoiaram o avanço do EI no início, embora muitos tenham depois se voltado contra o grupo.

    "O EI distorce o islã e aterroriza as pessoas", diz o médico Safeen Sindi, cônsul-honorário do Brasil em Irbil, a cerca de 90 km de Mossul. "99,9% dos muçulmanos não concordam com o EI. Sou sunita e não concordo."

    Em junho, o EI levou 24 horas para tomar Mossul -houve fuga em massa das tropas iraquianas.

    Os peshmergas curdos não acreditam que os soldados iraquianos vão estar prontos para uma operação no curto prazo. Mas os peshmergas tampouco irão invadir sozinhos Mossul, que tem 70% de árabes sunitas e só 25% de curdos, a maioria dos quais já fugiu da cidade.

    O Exército iraquiano é composto por sunitas e xiitas. Mas, se usar os xiitas para liberar Mossul, a população sunita pode se opor, sentindo-se invadida.

    Já os sunitas do Exército não querem matar os sunitas de Mossul em nome de um governo xiita.

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