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    Primavera Árabe na Líbia completa quatro anos com pouco a comemorar

    CHRIS STEPHEN
    DO "GUARDIAN", EM TÚNIS

    17/02/2015 11h57

    "Era melhor com Gaddafi", diz o jovem estudante líbio, estudando a espuma do seu cappuccino num café em Túnis enquanto reflete sobre a revolução que afastou Muammar Gaddafi do poder, quatro anos atrás. "Nunca imaginei que eu diria isso antes —eu o odiava—, mas as coisas eram melhores na época dele. Pelo menos tínhamos segurança."

    A terça-feira será o quarto aniversário dessa revolução, mas ninguém está celebrando. O bombardeio aéreo egípcio de posições do Estado Islâmico no leste da Líbia, em resposta à decapitação de 21 cristãos egípcios, representa mais uma guinada numa guerra civil já tenebrosa. Quatro anos atrás o estudante pegou em armas e ingressou em milícias rebeldes. Hoje ele pensa que teria sido melhor se tivesse ficado em casa.

    "Se eu pudesse voltar para trás no tempo, não aderia aos rebeldes", ele diz. Como muitos de seus antigos companheiros, ele deixou a Líbia, mas se nega a revelar seu nome, temendo represálias contra sua família, que ficou no país.

    "No passado, teríamos festejado o aniversário da revolução, mas não desta vez", comentou Ashraf Abdul-Wahab, jornalista. "Muitas pessoas lhe dirão que as coisas eram melhores sob Gaddafi, que a revolução foi um erro. O que elas querem dizer é que as coisas estão piores agora do que eram então."

    A Primavera Árabe da Líbia foi sangrenta, culminando com a morte de Gaddafi, um dos ditadores mais implacáveis do mundo. Depois de sua morte, as milícias rebeldes se voltaram umas contra as outras, numa mosaico de conflitos movidos pela disputa por espaço. A guerra civil em plena escala começou no ano passado, quando os partidos islâmicos foram redondamente derrotados nas eleições que as Nações Unidas supervisionaram, na esperança de que levassem paz ao país. Os islâmicos e seus aliados se rebelaram contra o Parlamento eleito e formaram a coalizão Aurora Líbia, que tomou Trípoli. O novo governo fugiu para a cidade de Tobruk, no leste do país, e desde então os combates são travados em todo o país.

    Com milhares de mortos, cidades devastadas e 400 mil pessoas que perderam suas casas, o grande vencedor é o Estado Islâmico, que está avançando rapidamente em meio ao caos. O Egito, que já era a principal fonte de apoio às forças governamentais, agora entrou na guerra travada entre três lados: o governo, a Aurora Líbia e o EI.

    Tudo isso está muito longe das esperanças dos revolucionários originais. Dona das maiores reservas petrolíferas da África, e com apenas 6 milhões de habitantes para dividir a receita, em 2011 tudo parecia apontar para um futuro róseo para a Líbia. "Pensávamos que seríamos a nova Dubai. Tínhamos tudo", diz uma jovem ativista que, como o estudante em Túnis, prefere não dar seu nome. "Hoje somos mais realistas."

    Muito se discute sobre o porquê de a Primavera líbia ter dado tão errado. Alguns responsabilizam a Otan por não ter dado apoio político após a campanha aérea; alguns argumentam que foi a falta de instituições para fazer a democracia funcionar, e outros apontam para a estrutura tribal fragmentada do país, que dificulta a cooperação e promove desconfianças. Muitos simplesmente desistiram de fazer qualquer coisa.

    "Muitos dos revolucionários de quatro anos atrás fugiram ou estão na clandestinidade", comenta Michel Cousins, editor do jornal em língua inglesa "Libya Herald". "Dizem que uma revolução devora seus filhos."

    Quatro anos atrás, jornalistas de toda parte foram a Líbia. Hoje Trípoli, após uma série de ataques do EI, é perigosa demais para todos exceto os mais intrépidos. E Tobruk, sob toque de recolher após uma série de ataques com carros-bomba, pediu à mídia que mantenha distância.

    Abrigado num hotel em Tobruk, o novo governo é dividido por disputas, e muitos temem que ele possa se fragmentar. Em Trípoli, a Aurora Líbia está tendo dificuldade em se impor na cidade, que está deteriorando em anarquia. Comandantes da coalizão convocaram o retorno do governo anterior e do congresso nacional geral, mas o verdadeiro poder é exercido pelas milícias.

    Na capital, que no passado era a cidade mais liberal da Líbia, fanáticos estão se impondo. Mulheres não podem mais deixar a cidade nos poucos voos que ainda operam, a não ser que estejam acompanhadas por um homem. Atiradores atacaram estátuas, mesquitas sufistas, uma biblioteca e a faculdade de arte, avisando que a idolatria não será tolerada. Salões de beleza foram fechados, e as escolas foram segregadas segundo o sexo dos alunos. Esta semana, uma unidade anunciou a prisão de uma mulher por bruxaria. Foram postadas fotos da mulher e de um gato preto mutilado.

    "Sei que as pessoas estão dizendo que havia mais segurança no tempo de Gaddafi, mas não para todo o mundo; um de nossos parentes foi encarcerado na época. Na prisão, ele passou fome e era espancado", diz uma moradora de Trípoli, negando-se a dar seu nome. "Nosso problema foram as eleições. Muitos dos candidatos eram cheios de entusiasmo, mas não tinham nenhuma experiência política."

    Enquanto isso, Benghazi, a segunda maior cidade líbia, onde a revolução primeiro começou com protestos diante da sede do tribunal, está sendo convertida numa Stalingrado árabe pelos choques entre tropas governamentais e milícias islâmicas. Quatro anos atrás, a praça do Tribunal foi enfeitada com bandeiras, faixas revolucionárias e jovens cantando canções em tendas coloridas. Hoje a praça é um lugar ermo e devastado.

    A Otan foi parteira da revolução líbia. Seus bombardeios foram a chave da vitória. Mas agora os líderes da aliança se assustam diante dos resultados, entre eles o crescimento do EI. Desconhecido na Líbia antes do ano passado, o EI vem aproveitando o caos no país para se expandir em ritmo acelerado. A execução dos cristãos egípcios, capturados em dezembro e janeiro, desencadeou uma resposta egípcia que promete converter a guerra em conflito internacional. Londres, Paris e Washington, principais responsáveis pela intervenção da Otan, temem que o EI possa lançar ataques contra a Europa, atravessando o Mediterrâneo. Enquanto isso, a Itália enfrenta a chegada de dezenas de milhares de migrantes que passam pela Líbia. Muitos morrem afogados sem completar a travessia perigosa.

    Em meio ao caos, alguns políticos de ambos os lados tentam formular um acordo. "Tememos a desintegração do Estado", disse o vice-líder do Parlamento, Mohammed Ali Shuhaib, que passou dez anos como prisioneiro político sob Gaddafi. Ele defende a formação de um novo governo de união. "Existe lugar para esperança. Nem todos da Aurora Líbia são fanáticos."

    O problema é que a Líbia agora está polarizada. A maioria da população é a favor do governo, mas uma minoria considerável está com a Aurora Líbia, e o espaço para um entendimento entre as partes encolhe rapidamente. O enviado da ONU, Bernardino León, abandonou as conversações de paz em Genebra no mês passado quando a Aurora Líbia se negou a comparecer.

    O Egito, aliado ao governo oficial, pode agora fazer a balança pender em favor dele. Graças a seu reconhecimento internacional, o governo já está adquirindo equipamentos militares; sua força aérea crescente foi seu grande trunfo em batalhas recentes com a Aurora Líbia.

    León insiste que sua prioridade é salvar a Líbia antes que o país entra em derretimento completo. Com as exportações de óleo em queda livre, o país está sobrevivendo às custas de suas reservas em divisas, que estão se acabando rapidamente. León teme que em pouco tempo o país fique sem dinheiro para alimentar a população, operar as usinas elétricas e abastecer as bombas que suprem as cidades de água vinda de poços profundos no Saara. "A Líbia está mergulhando muito profundamente no caos", ele diz.

    Para as pessoas comuns, a vida no país hoje se resume a uma batalha pela sobrevivência. Em meio aos cortes de eletricidade, água e gasolina, o artigo que mais falta é o otimismo, que havia em abundância quatro anos atrás. Onde ele ainda existe, mesmo que um pouco, é cauteloso e circunspecto. "Martin Luther King disse 'eu tenho um sonho', e eu ainda tenho um sonho", falou Shuhaib. "Não é o mesmo sonho que quatro anos atrás. Hoje as pessoas estão decepcionadas e frustradas, mas o sonho ainda está presente."

    Tradução de Clara Allain

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