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    No Equador, defensores da gramática corrigem pichações em muros

    EDUARDO VARAS
    JONATHAN WATTS
    DO "GUARDIAN", EM QUITO (EQUADOR)

    05/03/2015 21h14

    Dois homens se esgueiram pelas ruas de Quito no meio da noite, armados com latas de tinta em spray e o desejo de promover uma reforma. Não são ativistas políticos ou revolucionários: são defensores radicais da gramática, engajados na missão de corrigir a pontuação das pichações do Equador.

    Acrescentando acentos, inserindo vírgulas e posicionando pontos de interrogação no começo e no fim das orações interrogativas rabiscadas nos muros da cidade, nos últimos três meses os editores justiceiros vêm fazendo intervenções frequentes para expor as deficiências gramaticais de candidatos a poetas, amantes abandonados e ativistas antigoverno.

    As primeiras imagens desse combate guerrilheiro a defeitos triviais explodiram nas redes sociais em dezembro, mas, apesar da notoriedade global que alcançou, o grupo Ação Ortográfica Quito mantém segredo em torno da identidade de seus membros e nunca antes concedeu uma entrevista à imprensa.

    "Chamamos nossas ações de vandalismo gramatical", disse ao "Guardian" um dos membros, que nos informa apenas seu apelido, Diéresis (Trema, em português). "A grafitagem é um ato de vandalismo. Ao corrigir grafites, nós a convertemos em algo irônico."

    Advogado na casa dos 30 anos, Diéresis diz que foi impelido ao ativismo por um grafite feito num muro pelo qual passava com frequência, com texto escrito com pontuação lamentável.

    "Eu não conseguia acreditar: havia mais de dez erros gramaticais em apenas duas sentenças", ele explicou, enquanto tomamos um capuccino com amaretto. Então ele pegou uma embalagem de pizza, a recortou para formar um estêncil, chamou um amigo para ajudá-lo e partiu para fazer a revisão do texto confuso.

    Foram incluídos dois pontos de interrogação, dois acentos, três vírgulas, um ponto em cima de um "i" e um espaço entre "por" e "que"; uma elipse e um P incorretamente maiúsculo foram eliminados. O resultado final -"¿Para qué y por qué, mi amor? Por ti, por mí, lo siento." ("Para que e por que, meu amor? Por ti, por mim, lamento")- agora transmite mágoa e emoção, em vez de provocar dores de cabeça semânticas.

    Reprodução/Facebook
    Pichação com erros que foram corrigidos pelo grupo Ação Ortográfica Quito
    Pichação com erros que foram corrigidos pelo grupo Ação Ortográfica Quito

    "Erros gramaticais causam estresse. Nós apenas tornamos compreensíveis textos que, de outro modo, não transmitiriam mensagem alguma", diz Diéresis. Mas ele insiste que o objetivo principal é entreter, não educar.

    "Ao mesmo tempo em que promovemos o uso correto da linguagem, é uma desculpa para um pouco de diversão. A ideia de fazer o transeunte sorrir é agradável."

    A imagem das correções feitas em vermelho sobre o texto escrito em preto se multiplicaram no Facebook e Twitter.

    "Ouvi a notícia por acaso, quando alguém na Argentina compartilhou uma foto com uma amiga na Escócia, que a compartilhou com um conhecido mútuo", comentou Diéresis.

    "Eu jamais teria imaginado que nossa ação teria esse tipo de repercussão." Desde então, outros ativistas emularam sua iniciativa, corrigindo frases escritas em muros de Madri.

    Animados com a celebridade conquistada, o Ação Ortográfica Quito ganhou a adesão de um terceiro membro para participar do trabalho online. Os pseudônimos de todos eles estão ligados à gramática: além de Diéresis (Trema), o grupo é composto de Tilde (Til) e Coma (Vírgula).

    As intervenções são planejadas cuidadosamente.

    Durante o dia o grupo percorre a cidade à busca de erros gramaticais hediondos e omissões irritantes. Os alvos são fotografados, a equipe discute o que os autores originais quiseram dizer, e então, tarde da noite, ela entra em ação para corrigir o texto escrito.

    Diéresis, Tilde e Coma não sabem se seu trabalho infringe as leis.

    Policiais já os viram em ação e não fizeram nada. Mas eles optam por continuar anônimos, porque temem as repercussões políticas possíveis.

    O presidente equatoriano, Rafael Correa, aproveita suas transmissões regulares na TV para atacar as pessoas que o ironizam e conclama seus partidários a contra-atacar.

    "Este é um momento altamente sensível no Equador", diz Diéresis. "O presidente revelou na televisão nacional as informações pessoais de usuários do Twitter que o criticam ou ironizam. Isso é baixo, antiético e ilegal e nos dá uma boa visão do que está acontecendo no país. E me levou a pensar: 'O que fariam comigo?'. Em situações como esta, é preciso ser criativo."

    Seus receios talvez fossem exagerados se o grupo tivesse se limitado a corrigir pichações em muros, mas o integrante mais novo do grupo, Coma, abriu uma conta de Twitter sob o nome "Acción Ortográfica Quito" e recentemente corrigiu um tuíte de Correa, incluindo acentos, vírgulas e pontos de interrogação faltantes.

    "Algumas pessoas me fizeram prometer que não tentaríamos corrigir Correa, e eu concordei", diz Diéresis. "Parecia tolice corrigir alguém com problemas tão grandes. Mas então Coma fez uma intervenção sobre o tuíte de Correa. Passei aquele dia apavorado cada vez que meu telefone tocava."

    Para manter sua imparcialidade política, o grupo também corrigiu um tuíte do gabinete do prefeito de Quito, um dos principais adversários políticos de Correa.

    Apesar dessas preocupações, porém, eles vêm operando sem problemas até agora, mesmo que, em se tratando de gramática, nem todos fiquem felizes, especialmente aqueles cujos erros viram alvos do ridículo público.

    "A única pessoa realmente irritada por nossas ações é o autor do primeiro grafite que corrigimos", disse Diéresis. "Sabemos disso porque temos amigos em comum."

    Tradução de Clara Allain

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