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    Desencantados com a vida civil, veteranos de guerra combatem o EI

    DAVE PHILIPPS
    DO "NEW YORK TIMES", EM AUSTIN, TEXAS

    16/03/2015 12h43

    No final do ano passado, Patrick Maxwell, 29, veterano da guerra no Iraque e hoje corretor de imóveis em Austin, uma cidade fervilhante, viu em um noticiário sobre combatentes islâmicos no Iraque alguma coisa que nunca havia visto quando serviu como fuzileiro naval naquele país: o inimigo.

    "Patrulhávamos a cada dia, éramos alvo de tiros, de disparos de morteiro, de explosões de bombas improvisadas; um de meus amigos foi morto", diz Maxwell, antigo sargento que serviu em 2006 na província de Anbar. "Mas jamais vi o inimigo, jamais disparei um tiro contra ele".

    Poucos dias mais tarde, ele estava na linha de frente, como combatente voluntário das forças de segurança curdas, conhecidas como "peshmerga", no norte do Iraque, e observava combatentes do Estado Islâmico pela mira de seu fuzil, enquanto balas zumbiam ao seu redor.

    Fabio Braga/Folhapress
    Peshmerga em trincheira, evita avanço de milicianos do EI, próximo a Kirkuk, no Iraque
    Peshmerga em trincheira, evita avanço de milicianos do EI, próximo a Kirkuk, no Iraque

    "Talvez meu alistamento tenha expirado, mas continuo a ser um guerreiro", disse Maxwell, que deu baixa honrosa do Corpo de Fuzileiros Navais norte-americano em 2011. "Calculei que, se eu pudesse sair de lá depois de matar o máximo possível dos bandidos, isso seria bom".

    Maxwell está entre os poucos norte-americanos, a maioria dos quais antigos soldados, que se apresentaram como voluntários nos últimos meses para enfrentar a facção radical Estado Islâmico (EI), mesmo que o governo dos Estados Unidos hesite em colocar forças terrestres em combate na região. Propelidos por uma combinação de motivações - indignação diante das atrocidades do EI, tédio com a vida civil nos Estados Unidos, insatisfação por o inimigo que tentaram neutralizar estar cada vez mais forte - eles se apresentaram como voluntários e se tornaram instrutores e combatentes não remunerados nas milícias locais.

    "Acima de tudo, eles não gostam do EI e querem ajudar", disse Matthew VanDyke, cineasta norte-americano que no começo do ano passou algum tempo em companhia de quatro veteranos norte-americanos, treinando clandestinamente uma milícia de cristãos assírios para resistir ao EI. Agora ele está recrutando mais veteranos para ajudar, ainda que no final de fevereiro a American Mesopotamia Organization, organização sem fins lucrativos sediada na Califórnia que ajudou a financiar a milícia, tenha rompido relações com ele.

    Em entrevista telefônica, do Iraque, VanDyke disse que muitos veteranos passaram anos aperfeiçoando sua capacidade de combate durante a guerra, e a viam desperdiçada em sua vida civil, o que os tornava ávidos por uma nova missão.

    "Muitos deles fizeram coisas importantes combatendo fora do país, e voltaram para casa e se viram reduzidos a empregos servis, o que pode ser realmente difícil", afirma. "Nós oferecemos a eles uma espécie de emprego dos sonhos, uma chance de fazerem aquilo para o que foram treinados, sem toda a burocracia e as apresentações em PowerPoint".

    Ainda que não haja contagem oficial, um porta-voz da milícia curda YPG, na Síria, disse que mais de 100 cidadãos dos Estados Unidos estão lutando lá. Ainda que líderes dos peshmerga no Iraque antes tivessem declarado que havia mais de 10 norte-americanos combatendo no Iraque, agora dizem que não há combatente norte-americano algum na área.

    Embora as autoridades norte-americanas tenham tentado rastrear e processar cidadãos do país que decidiram aderir ao EI, não se sabe como reagirão aos norte-americanos que decidiram combater o grupo, especialmente porque algumas milícias curdas na Síria têm vínculos com grupos que o Departamento de Estado dos Estados Unidos classifica como organizações terroristas.

    A decisão de combater o EI porta riscos. Além da possibilidade de serem mortos, capturados ou sequestrados para fins de resgate, os norte-americanos também podem se ver combatendo nas fileiras de grupos considerados organizações terroristas pelo governo dos Estados Unidos. John Walker Lindh, por exemplo, aderiu ao Taleban para combater outros afegãos durante a guerra civil do Afeganistão, mas mais tarde foi capturado por forças norte-americanas durante a invasão ao país depois dos ataques do 11 de setembro.

    Ele foi sentenciado a 20 anos de prisão por uma lista de crimes que incluem conspiração para assassinar cidadãos norte-americanos.

    "Essas zonas de guerra são muitas vezes nebulosas, e é difícil distinguir entre amigos e inimigos", disse Neil MacBride, antigo procurador federal norte-americano que conduziu a acusação em casos semelhantes. "Os cidadãos dos Estados Unidos correm o risco de violar as leis que proíbem assistência material ao terrorismo, se decidirem aderir ao grupo errado".

    Maxwell disse que foi ao Iraque em parte porque havia pouca coisa que o mantivesse nos Estados Unidos.

    Depois de uma carreira sólida nas forças armadas, que incluiu proteger o presidente em Camp David e treinar recrutas, ele deixou os fuzileiros navais em 2011. Saltou de emprego a emprego, como pedreiro, bartender e pedalando um táxi-bicicleta. Também trabalhou como segurança, protegendo o consulado dos Estados Unidos no Afeganistão, mas pediu demissão depois de sete meses.

    No final do ano passado, quando o EI intensificou seus ataques no Iraque, ele estava comprando e vendendo casas em Austin e lhe ocorreu que queria voltar ao Iraque e encarar o inimigo que lhe havia escapado uma década antes.

    Temendo que aderir à milícia errada pudesse causar problemas por conta das leis de combate ao terrorismo, Maxwell contatou um tenente dos peshmerga via Facebook e ofereceu seus serviços.

    "Foi surpreendentemente fácil. Reservei passagem em um voo comercial e disse aos meus clientes que faria uma viagem como mochileiro na Ásia", ele disse em entrevista no pequeno apartamento em que vive. As únicas coisas que destoavam no ordeiro espaço eram uma pilha de equipamento militar e uma cópia de "Por Quem os Sinos Dobram", de Hemingway.

    Em Sulaimaniya, no norte do Iraque, ele foi recebido no aeroporto pelo tenente curdo. Pouco depois, fez amizade com um dos poucos voluntários ocidentais presentes, um veterano de guerra canadense chamado Dillon Hillier, que serviu no Afeganistão.

    "Nós dois considerávamos importantes ajudar, e não ficar em casa assistindo ao que acontecia", disse Hillier por telefone, de sua casa em Ontário.

    Maxwell disse que os combates foram raros durante o período que passou combatendo ao lado dos curdos. "Era mais um impasse ao estilo da Primeira Guerra Mundial", ele disse.

    Nas sete semanas que passou no Iraque, ele se desencantou ao assistir a uma longa lista de norte-americanos despreparados surgindo como voluntários, entre os quais um homem excluído dos fuzileiros navais e que era alvo de mandados de prisão nos Estados Unidos, e um motoqueiro com piercings nos lábios, presas de vampiro implantadas e a palavra "necromante" pintada em sua jaqueta de couro preto.

    "Caras que não têm por que viver e só querem arrumar onde de se encostar", disse Maxwell.

    A passagem dele pelos peshmerga terminou abruptamente na metade de janeiro, ele disse, quando soldados das forças especiais dos Estados Unidos que assessoravam os curdos o viram em uma base perto de Kirkuk, e funcionários do Departamento do Estado norte-americano disseram aos curdos que voluntários como ele não deveriam estar em combate.

    Maxwell disse que foi retirado da linha de frente e que dias depois ele e Hillier, frustrados, decidiram voltar para casa.

    "Não fazia sentido ficar lá", disse. "A política atrapalhou tudo".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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