• Mundo

    Saturday, 18-May-2024 02:47:10 -03

    Desentendimentos entre EUA e Irã marcam negociações nucleares

    DAVID E. SANGER
    DO "NEW YORK TIMES", EM LAUSANNE (SUÍÇA)

    01/04/2015 11h56

    As negociações nucleares em Lausanne ganharam uma prorrogação na terça-feira (31), enquanto alguns melindres políticos exclusivamente americanos e iranianos permeavam a maratona de sessões de negociação, levando muitos a especular que talvez os dois países, que mal se falavam havia 35 anos, simplesmente não estariam preparados para superar desconfianças antigas.

    Nos comentários ouvidos nos corredores do secular hotel Beau-Rivage Palace, em Lausanne, onde o secretário de Estado americano John Kerry e seus colegas de cinco outros países se esforçam para fechar um acordo político preliminar com o Irã, os americanos falam, de modo tipicamente americano, sobre números e limites.

    Mas quando os representantes iranianos saem das salas elegantes onde a ordem do pós-Primeira Guerra Mundial foi negociada 90 anos atrás, para transmitir informações à imprensa –principalmente a iraniana—, a maioria das perguntas sobre números e limites é ignorada. Esses representantes falam quase exclusivamente sobre a preservação do respeito por seus direitos e sobre o senso de soberania do Irã.

    Brian Snyder - 20.mar.2015/AFP
    O secretário de Estado John Kerry (esq.) e o chanceler Javad Zarif (dir.) negociam em Lausanne
    O secretário de Estado John Kerry (esq.) e o chanceler Javad Zarif (dir.) negociam em Lausanne

    Para os participantes nas salas de negociação –onde as discussões passaram do prazo final (meia-noite do dia 31 de março) com uma rara ameaça pública do porta-voz da Casa Branca, Josh Earnest, de abandonar a mesa se o Irã não tomasse algumas decisões políticas fundamentais—, as diferenças estão começando a ameaçar a viabilidade do empreendimento inteiro. Os negociadores iranianos, altamente sintonizados com a política de seu país, relutam em assinar qualquer documento que contenha muitos dados específicos sobre o que Teerã terá que o entregar ou guardar em um depósito ou sobre quanto combustível nuclear o Irã teria que entregar aos russos ou diluir.

    "Nosso foco é todo sobre dados quantificáveis: quantas centrífugas podem operar, quanto plutônio pode sair do reator de Arak, quanto urânio o Irã pode ter disponível", comentou outro dia um funcionário americano sênior que está ao centro das negociações, pedindo anonimato devido ao sigilo que os EUA quer manter em torno das discussões.

    "Os iranianos enfatizam o simbolismo, a importância de evitar a ótica de estarem cedendo", disse o funcionário, mesmo que isso signifique realizar uma atividade de enriquecimento nuclear cara, ineficiente e que faz pouco sentido econômico ou estratégico.

    Existe a impressão de que os obstáculos seriam menores se as negociações fossem limitadas a John Kerry, o secretário da Energia Ernest Moniz e os colegas iranianos dos dois. Segundo seu relato, a relação de trabalho entre eles é forte; Kerry já passou mais tempo com o chanceler iraniano, Mohammad Javad Zarif, que estudou nos EUA, do que com o chanceler de qualquer outro país.

    Moniz fala do enriquecimento e da tecnologia de reatores com o diretor da agência iraniana de energia atômica, Ali Akbar Salehi; embora tenham pontos de discordância, as divergências são quase todas tecnológicas, não ideológicas. Os dois iranianos estudaram nos Estados Unidos antes da revolução de 1979, e, embora não possam dizê-lo, parece que ambos enxergam esta negociação nuclear como uma maneira de encerrar a fase em que o Irã se definiu por sua oposição aos Estados Unidos.

    Com frequência, porém, suas mãos parecem estar atadas. Por mais que a equipe americana queira tratar as negociações como maneira de conter uma ameaça perigosa de proliferação nuclear, ela precisa lidar com um Congresso que enxerga as negociações como instrumento para conter o Irã no momento em que esse país flexiona seus músculos no Oriente Médio, desde o Iraque ao Iêmen e à Síria.

    Para os iranianos, as negociações são primeiramente um teste para saber se os Estados Unidos, ocasionalmente ainda descrito como o Grande Satã, conseguirá aprender a aceitar o ressurgimento de seu país como potência persa.

    Em diversos momentos o líder supremo iraniano, o aiatolá Ali Khamenei, surpreendeu sua própria equipe negociadora ao traçar limites que ela não pode atravessar: o Irã precisa poder produzir combustível nuclear em escala industrial, com produção dez vezes superior à atual, e não deve fechar suas instalações nucleares, o que explica a discussão sobre como "redefinir a finalidade" da gigantesca usina subterrânea de enriquecimento em Fordow, para convertê-la em algum tipo de "instalação de pesquisas e desenvolvimento" que não processe urânio.

    Outro dia o vice de Zarif declarou novamente que o Irã não vai enviar nenhuma parte de sua reserva de combustível para a Rússia, algo que parecia ser uma solução indicada pelo bom senso para tirar o combustível do país sem que deixasse de pertencer a Teerã. Muitos tinham imaginado –equivocadamente, como agora se sabe– que isso já tivesse sido acordado. Em vez disso, a porta-voz do Departamento de Estado teve que admitir que, mesmo nesta etapa tardia, "em última análise não temos um acordo com os iranianos quanto à questão do estoque de urânio".

    Para Karim Sadjadpour, especialista no Irã na organização Carnegie Endowment for International Peace, trata-se de um risco ocupacional que existe quando se negocia com um país cujos centros de poder estão tão divididos.

    "Uma dificuldade eterna em lidar com o Irã é que as autoridades mais poderosas desse país são inacessíveis, enquanto as autoridades mais acessíveis não são poderosas", disse Sadjadpour na terça-feira.

    A dificuldade de forjar este acordo deve servir como relato cautelar: mesmo que um pacto seja firmado até 30 de junho, as chances de reconstruir a relação entre EUA e Irã são pequenas, na melhor das hipóteses, pelo menos no futuro próximo. Como escreveu recentemente Haleh Esfandiari, acadêmica iraniano-americana do Wilson Center: "Quatro décadas de hostilidade entre o Irã e os EUA não serão apagadas da noite para o dia".

    Ela deve saber do que fala: em 2007, quando viajou ao Irã para visitar sua mãe doente, foi encarcerada no presídio de Evin, em Teerã, por 105 dias.

    Tradução de CLARA ALLAIN

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024