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    Para historiador, é hora de tirar a palavra 'genocídio' do centro do debate

    SYLVIA COLOMBO
    DE SÃO PAULO

    24/04/2015 02h00

    "Para a maioria dos armênios, o reconhecimento de um genocídio parece ser a única coisa capaz de trazer conforto. Já boa parte dos turcos está num ponto em que aceitaria qualquer palavra que não fosse essa. É hora de tirar esse conceito do centro do debate e abrir outras vias para o diálogo."

    Em entrevista à Folha, por telefone, o historiador e jornalista britânico Thomas de Waal, 49, formado em Oxford, acredita que o centenário do massacre dos armênios ocorre num momento de flexibilização e abertura no meio intelectual e acadêmico turco. "É exagerado pensar, porém, que isso signifique que os turcos aceitem ter os avós comparados a Hitler e aos nazistas."

    Em "Great Catastrophe - Armenians and Turks in the Shadow of Genocide" (Oxford Press, importado), que acaba de lançar, De Waal coloca o foco no que considera ser um abismo na historiografia: a narrativa e a análise do que aconteceu após 1915 em toda a região do Cáucaso e que estabeleceu a atual cisão em torno da definição da tragédia.

    Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista.

    Divulgação
    O historiador e jornalista britânico Thomas de Waal, especialista em assuntos da Armênia e da Turquia
    O historiador e jornalista britânico Thomas de Waal, especialista em assuntos da Armênia e da Turquia

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    Folha - Você chama o episódio de "grande catástrofe". Por que prefere não usar o termo "genocídio"?
    Thomas de Waal - Não considero "genocídio" uma forma equivocada do ponto de vista técnico, e prefiro me posicionar ao lado dos que defendem que ele existiu do que ao lado dos que o negam.
    Dito isso, porém, creio que a palavra se transformou num instrumento político e ideológico que não deixa margem para um desenlace de reaproximação. Preferia que se discutisse menos isso e passássemos a fazer outras questões sobre o contexto da época e sobre as formas de diálogo que são efetivamente tentadas na região.
    Cito elogiosamente, por exemplo, a iniciativa curda de reabrir igrejas armênias em seus territórios e a atuação de intelectuais turcos de origem armênia trazendo novas abordagens ao tema à imprensa da Turquia.

    Em que momento o uso de "genocídio" passou a ser um problema?
    Uma das principais preocupações, quando comecei a pesquisa, era responder a essa pergunta: "Como pode ser que a primeira coisa que as pessoas perguntam quando o assunto surge é 'foi ou não foi genocídio'?". Creio que isso foi reforçado pelas ambiguidades que o conceito carrega.

    Quais?
    São várias e dão munição aos dois lados. A Convenção sobre Genocídio da ONU, de 1948, definiu "genocídio" como "atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, racial, político ou como tal". Este último item deixa tudo muito vago, várias coisas podem encaixar-se aí.
    Já o principal argumento da Turquia apoia-se na questão da intencionalidade.
    Mas isso faz com que existam assassinatos mais errados do que outros. Faz com que a morte como "efeito colateral" seja mais aceitável que outras e abre-se espaço para infindáveis interpretações subjetivas.

    Quando surge a controvérsia?
    Em 1915, não havia discordância de que ocorria uma matança dos armênios. O governo turco entrou na Primeira Guerra do lado da Alemanha, contra a Rússia. A população de 2 milhões de armênios foi acusada de simpatizar com a Rússia, e eles foram considerados traidores.
    Ordenou-se, então, a deportação de quase toda a população armênia. Pelo menos metade dos homens foi morta pelas forças de segurança turcas. Os sobreviventes sofreram as consequências da perseguição.

    Quantos morreram?
    Embora novos documentos e estudos estejam sempre surgindo, é consenso que o número de mortos seja de ao redor de 1 milhão de pessoas. Na região original ocupada pelos armênios, ficou apenas um décimo da população.

    A polêmica, portanto, surgiu depois? O que ocorre nesse meio-tempo?
    Os armênios se concentraram, num primeiro momento, em reconstruir suas vidas. Muitos, como conto no livro, quiseram que os filhos aprendessem outras línguas e tivessem vidas independentes e diferentes nos novos países.
    Nos anos 1960, há uma grande transformação, principalmente ao redor do 50º aniversário do evento, em 1965. É quando o luto íntimo se transforma em tema público e político.
    Inspirados pela onda de conscientização gerada pelo Holocausto e que levou os judeus a buscarem justiça pelos crimes nazistas, os armênios levantaram o tema das reivindicações e pedidos de desculpas.
    Aí veio a década de 1970, quando houve uma onda de ataques terroristas por parte de militantes armênios direcionada a diplomatas turcos. O discurso turco, então, passou a ser mais forte, acusando armênios de serem traidores, além de verdadeiras ameaças.

    A palavra "genocídio" foi cunhada usando a questão armênia como exemplo. O termo deixou de ter sentido para esse evento, ou para todos?
    O termo foi criado quase três décadas após o massacre armênio, em 1944, pelo advogado judeu Raphael Lemkin (1900-1959), cuja família migrou aos EUA durante a Segunda Guerra. Ele costumava explicar que havia se interessado em entender o que chamava de "genocídio" porque já havia acontecido várias vezes na história, e citava diretamente o caso armênio.
    Quatro anos depois, as Nações Unidas adotaram o termo e passaram a considerá-lo um crime internacional. É algo que possui legitimidade. Porém, como dizia antes, deixou de ser um termo técnico para significar algo subjetivo e propício a manipulações, tornou-se o Mal. Estados associados a ele tendem a ser estigmatizados, enquanto as vítimas do "genocídio" ganham um crédito moral também desigual.
    O debate histórico e crítico sobre o que ocorreu, necessário para os reparos e perdões necessários, fica travado.

    O sr. diz que, nos últimos 15 anos, a Turquia mudou muito, e hoje há um grupo de intelectuais mais abertos que aceitam abordagens mais ponderadas. O que mudou?
    Uma nova geração de historiadores surgiu e está tentando entender as coisas dentro de um contexto mais amplo. Já ficou para trás a ideia do historiador turco contra o historiador armênio, ambos interessados apenas no seu lado.
    Dito isso, porém, é preciso reforçar que a mudança de uma sociedade não ocorre do dia para a noite. E prova disso é o triste assassinato de Hrant Dink (1954-2007) por um jovem nacionalista turco.

    Esse crime foi um sinal de que talvez seja cedo demais para superar diferenças?
    Dink é um divisor de águas nesse assunto porque, mesmo tendo sido tragicamente assassinado, o fato de ter ganhado voz foi um avanço, numa sociedade que não se permitia nada disso até ali, por ignorância. Ele dizia que a sociedade estava defendendo a única verdade que ela conhecia. E que seu papel e o de outros de sua geração era trazer as informações sobre o passado.

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