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    ONGs globais são negócio, afirma especialista

    ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
    DE SÃO PAULO

    06/05/2015 02h00

    Assim que o terremoto devastou o Haiti em 2010, o Exército americano entrou em ação: distribuiu 2,6 milhões de garrafas de água, entre as quais 120 mil galões da "deluxe" marca Fiji, embalada "no remoto vale de Yaqara", a 13 mil quilômetros dali.

    Três anos depois, era possível encontrar vários desses recipientes de plástico bloqueando canais e alagando as ruas de Porto Príncipe.

    Uma entre muitas trapalhadas que governos e ONGs internacionais fizeram no país, diz o jornalista Jonathan M. Katz, 35. Para ele, um cenário bem parecido com o Nepal hoje.

    Allison Shelley/Divulgação
    O jornalista Jonathan M. Katz no Haiti
    O jornalista Jonathan M. Katz no Haiti

    Então correspondente da agência de notícias Associated Press, ele estava entediado no dia 12 de janeiro de 2010, em sua casa na capital do Haiti. Só de cueca e regata, brincava pela internet, com um amigo americano, de nomear animais com letras sorteadas do alfabeto.

    Foi quando Katz perdeu o chão. Era o "gwo machin ki pasé", frase em crioulo para "o grande caminhão que passou". Assim haitianos se referem ao estrondo de um terremoto.

    No livro "The Big Truck that Went By" (2013, sem tradução), Katz escreveu sobre "como o mundo veio salvar o Haiti e deixou um rastro de destruição". Ele conta como a ajuda humanitária, "apesar das boas intenções", pode provocar estragos duradouros em países pobres atingidos por catástrofes.

    Como o fato de ninguém ter ligado para a Coordenação Nacional de Segurança Alimentar antes de focar em campanhas para arrecadar comida –teriam descoberto que havia suprimentos suficientes em depósitos de Porto Príncipe para fornecer uma refeição completa para 300 mil pessoas por três semanas.

    Em entrevista à Folha, Katz fala sobre como é o "business" humanitário em países pobres. "É muito fácil para alguém de fora entrar, fazer o que quiser e não responder a ninguém."

    *

    Folha - Como a ajuda internacional pode piorar a situação de países pobres pós-desastre?
    Jonathan M. Katz - Estrangeiros assumem que sabem mais e não querem ouvir moradores, às vezes os marginalizam completamente. E se negam a ser responsabilizados quando algo dá errado.

    Como isso aconteceu no Haiti?
    Um bom exemplo: o Exército americano enviou 2,6 milhões de garrafas de água, incluindo 120 mil galões de "água Fiji deluxe". Três anos depois, recipientes de plástico ainda bloqueavam canais quando chovia na capital.

    Qual o paralelo entre Haiti e Nepal?
    São países pobres, onde a indústria humanitária atua há bastante tempo, com governos fracos, facilmente intimidados por atores externos.

    Você fala do "business" humanitário. Como isso ocorre?
    São bilhões de dólares que fluem para as maiores organizações. Elas têm funcionários em tempo integral, pessoas fazendo carreira na área, atrás de promoções, pensões, todo o esquema. Não é um insulto chamar de "business". Isso pode ser ótimo. Mas é cego fingir o contrário.

    Você viu de perto a atuação de celebridades como Sean Penn no Haiti. Elas são bem-vindas?
    Para os haitianos, Sean era apenas mais um estrangeiro. Quem deveria se questionar sobre o poder dado à celebridade são as pessoas do seu país de origem. É daí que vem o dinheiro.

    Deixar os locais marginalizados do debate era a regra no Haiti?
    Quase nenhum dos agentes internacionais falava crioulo, e os grupos sempre escutavam, e espalhavam entre si, que os haitianos eram perigosos e imprevisíveis fora dos muros. Acho que jamais ocorreu a eles outra hipótese.

    Como ocorre o desperdício entre a doação e a ajuda que realmente chega à população?
    Quando você dá dinheiro para um grupo assistencial, está pagando a ele para que execute um programa, e isso tem custo: viagem, despesas de escritório, salários, contas de telefone, cuidados médicos, comida para os seus próprios trabalhadores etc. A questão é se você gosta dos resultados. O truque é que esses grupos se safam por não ter de prestar contas especificamente sobre o trabalho.

    Como ONGs e governos estrangeiros devem atuar então?
    O país que sofreu o desastre tem de assumir a liderança. Se há ajuda externa equipada e disposta a apoiá-los, ótimo. Mas nós precisamos saber o que estamos fazendo. Boas intenções não bastam.

    Quais decisões precipitadas são comuns após a catástrofe?
    Há um estranho misto de pânico com total indiferença à passagem real do tempo. Assumem que há escassez de alimentos e água onde pode não haver nada disso. Imaginam saques e violência, o que é improvável. Preparam-se para grandes surtos de doenças, o que quase nunca acontece.

    E respondem a essas "ameaças" com todo o tipo de intervenções malucas, ignorando os problemas reais que as pessoas tendem a ter, como necessidade de abrigos permanentes e perda de rendimento. Ouvi na rádio sobre equipes de busca e salvamento dos EUA no Nepal. Hoje! Faz uma semana e meia! Quem eles vão resgatar?

    Você tuitou sugerindo procurar ONGs locais em vez de 'grifes' internacionais. Por quê?
    Quem quer ajudar assume que ONGs de grife têm grande presença no mundo inteiro. No Haiti, a Cruz Vermelha americana recebeu US$ 486 milhões e tinha apenas quatro pessoas lá no dia do terremoto. Outros grupos sem qualquer experiência no lugar voam logo após o desastre, porque sabem que o dinheiro vai começar a fluir.

    Qual é o maior erro daqueles que relatam um desastre, como a mídia e ONGs?
    Não levam as pessoas afetadas a sério. Assumem que são animais violentos que precisam ser protegidos de si mesmo, ao contrário do que são: anfitriões bravos e traumatizados.

    Outro grande erro é mandar repórteres que não conhecem o país nem sabem como cobrir desastres. Eles improvisam sobre histórias banais e repassam fatos básicos errados. Imagine se um repórter aparece na Copa sem saber como cobrir futebol e escreve críticas a jogadores que não usam as mãos.

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