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    Iranianos estão cansados de ser 'nação pária', diz jornalista detido em 2009

    CHRISTINE SPOLARE
    DO "FINANCIAL TIMES"

    13/05/2015 10h34

    O jornalista da "Newsweek" Maziar Bahari não se esquece do que enlouqueceu seus interrogadores quando ele foi preso no Irã.

    Sua educação e polidez. Seu instinto de repórter ao explicar como os protestos de rua (sobre os quais escrevia) e que se seguiram à reeleição do presidente Mahmoud Ahmadinejad interessavam aos editores da revista para a qual trabalhava, "Newsweek". Seu gosto por Leonard Cohen e Anton Chekhcov. Seu embaraço quando perguntado o que sabia dos prazeres sexuais de Nova Jersey. Por qual motivo, um muçulmano como ele teria um número de telefone de mulher no celular? (Nesse caso o de Shrin Ebadj´s, a vencedora do prêmio Nobel da Paz). Tudo isso e mais algumas piadas que ele inventara com um repórter para o The Daily Show estimularam seus "técnicos" a seviciá-lo duramente na escura cadeia Evin em Teerã.

    Seis anos depois da prisão de Bahari por 118 dias, quando foi exibido na televisão iraniana como um espião da CIA, do MI6, de Mossad e até mesmo da "Newsweek", o jornalista iraniano-canadense, de fala macia, talvez o mais sagaz ex-prisioneiro que jamais chacoalhou as correntes de ferro do Irã, vive em Londres. Conversa semanalmente com amigos na República Islâmica via Skype e blogueia sobre as últimas conspirações do país.

    Dirige o Iwanwire, um site de notícias em farsi e inglês que põe em contato jornalistas não-profissionais e profissionais no Irã e oferece reportagens sobre o correr das negociações nucleares com o Ocidente.

    Continua a fazer documentários, especialmente retratos duros, memoráveis das confissões forçadas no Irã —humilhação que ele próprio sofreu e que compeliu até Hillary Clinton, na época a Secretária de Estado Americano, a lutar por sua libertação.

    No momento Bahari está arrebanhando ( a imprensa escrita, online, o que possa conseguir como plateia) para prestigiar vários assuntos, como por exemplo o release do filme "118 Dias", (Rosewater) baseado nas suas memórias e dirigido por Jon Stewart. Estimula também debates no Irã sobre direitos das mulheres, liberdade de expressão e perseguição das minorias do país.

    "Antes de ser preso eu era uma pessoa muito fechada, consciente de minha privacidade", diz Bahari com um sorriso. " Quando saí percebi que me tornara uma pessoa pública. E é importante que eu e não o governo iraniano controle minha história".

    Bahari não se parece nada com um dissidente incendiário. É espirituoso e modesto nas entrevistas e aos 47 anos, seus pensamentos são fecundados por um conhecimento nativo da política do Irã e da capacidade de reforma que tem o país. " Pessoalmente não sou partidário de uma mudança de regime e sim da mudança da mentalidade dentro do sistema, para que as pessoas possam conversar sobre seus direitos", diz ele durante uma conversa informal num café de Primrose Hill, perto de sua casa londrina.

    "O que aconteceu antes e agora foi um movimento de direitos civis e um movimento de direitos civis liderado por mulheres. Quando as manifestações de 2009 eram chamadas de Revolução Verde, eu me encolhia todo por dentro. Não era uma revolução! Os iranianos não querem uma revolução, querem somente seus direitos como cidadãos."

    "Não importa qual seja o governo do Irã, não somos uma República Islâmica, nem uma teocracia, nem uma ditadura islâmica", adiciona.

    "Somos tudo isso e ao mesmo tempo nada disso. Na verdade estamos sob um sistema patriarcal. E muitos iranianos, homens e mulheres, sabem que para se conseguir qualquer mudança básica, fundamental, é preciso mudar esse sistema patriarcal."

    O humorista americano Jon Stewart tem sido um grande colaborador no apoio que dá ao esforço de Bahari para retratar um Irã mais cheio de nuances – em parte porque o noticiário cômico-satírico de Stewart nos Estados Unidos teve um papel importante no drama da prisão de Bahari.

    O Daily Show foi para o Teerã em Maio de 2009 e pediu a Bahari, que noticiava a eleição presidencial, para atuar como "escada" num esquete sobre espiões. Semanas depois, quando Bahari foi preso seus guardas descobriram o vídeo do esquete de comédia. Os agentes da inteligência não eram lá essas coisas nem em humor nem em lógica. Na maior seriedade rotularam o esquete ofensivo como "Espião no Café" e se vangloriaram pela descoberta da suposta traição.

    Depois que Bahari foi solto em outubro de 2009, ele e Stewart se encontraram e começaram a discutir qual seria a melhor maneira de explorar esta essa história absurda de sua prisão. Bahari já estava escrevendo "Then They Came For Me", uma narrativa de suas vivências — desde a revolução de 1979 até sua mudança para o Canadá aos vinte e poucos anos e a volta ao Irã em 1997. "118 Dias", é uma adaptação do livro, com algumas pinceladas hollywoodianas.

    Durante a prisão, Bahari fez uma confissão forçada por tortura,– alegando ser um agente da mídia ocidental, mídia que estava tentando derrubar o governo islâmico – como é mostrado no filme. Sua mulher Paula Gourley, grávida, teve um papel essencial no comando de uma campanha global de mídia, pedindo que o marido fosse solto. Mas a prisão de Bahari não surgiu, como o filme pode nos induzir a pensar de um sketch do Daily Show, ou de um ato corajoso de um único repórter. O Bahari do filme, representado por Gael Garcia Bernal, era muito mais inocente do que o verdadeiro repórter. Quando o belo ator dança e roda na sua cela ao som de "Dance Me to the End of Love", faz uma homenagem, um tributo à esperança e à família. Bahari nunca dançou em Evin, nem nos seus melhores dias.

    Bahari que esteve presente em quase toda a filmagem, dá de ombros quando mencionam alguma licença poética do diretor. "Jon é uma celebridade da TV nos Estados Unidos e tem uma sensibilidade popular. Achei o filme muito bom. Pode se ver a paixão do diretor pelo assunto, sua atenção à estrutura dramática, ao desenvolvimento do caráter, à emoção, ao detalhe. Acho que é o mais autêntico filme não iraniano sobre o Irã que existe."

    Divulgação
    Cena do filme "118 Dias"
    Cena do filme "118 Dias"

    "118 Dias", também chamado de "Rosewater", (que leva esse nome "água de rosas", pelo cheiro enjoativo do perfume usado pelo mais cruel dos interrogadores de Bahari em Evin,) quer ser mais do que uma história de um só jornalista e muito mais do que uma derrubada dos mulás. O filme, que fez sucesso, atravessa gerações para contar uma história moderna do Irã, assim como alguns pecados dos Estados Unidos e da Grã Bretanha. Stewart filmou na Jordânia. Bahari tinha cinco amigos no Teerã que filmaram cenas de rua que entraram na edição final.

    "118 Dias" é uma reflexão sobre o poder da repressão e sobre as acrobacias mentais exigidas por quem esteja preso nessa teia de poder. Bahari ainda odeia Rosewater, o brutamontes, mas reconhece que ele estava apenas cumprindo seu dever — o inquisidor cobrava horas extras pelo tempo que passava esmurrando Bahari. "O interrogador na minha prisão, na verdade, é parte do sistema. É um exemplo extremo do sistema, mas sua estupidez, sua ignorância, não são intencionais da parte dele. Qualquer tipo de sistema que pense que pode criar um mundo ideal com todas essas criaturas imperfeitas, está louco. Quando você tenta, como ele tentou, armar teorias que se articulem em paradigmas da vida do Irã, ou mesmo do Ocidente, parece loucura e é loucura."

    "Quando meu inquisidor dizia, 'você é um espião', ele acreditava nisso. Não estava brincando. E foi assim que armou o quebra-cabeças. Viu que eu tinha um número de telefone no meu celular, de Nick Burns, de Harvard. Nick Burns havia trabalhado para o governo americano — Burns era um diplomata famoso. Então, para eles, era a CIA. E ainda por cima ele escrevia um editorial para a "Newsweek". E pronto. Para eles, dois mais dois nunca são quatro. Dois mais dois são cinco, ou sete ou dez", diz o repórter.

    Bahari ri baixo, mas é um riso de verdade. É assim que os iranianos ou egípcios ou russos ou iraquianos ou qualquer pessoa presa nesses tempos desconcertantes — sobrevivem de ano a ano. Gerações da família de Bahari sofreram também. Seu pai ficou preso dois anos em 1950, sob o xá Reza Pahlavi, por pertencer ao partido comunista. A única irmã de Bahari, Maryam, professora, ligou-se mais tarde á insurreição islâmica, mas foi presa quando o aiatolá Ruhollah Khomeini entregou os dissidentes. Passou seis anos na prisão como membro do partido comunista. Morreu de leucemia em começos de 2009.

    Bahari começou sua vida de proezas fugindo. Aos 19 anos, sabendo quase nada de inglês, atravessou a fronteira do Paquistão. Por acaso conheceu um evangélico americano. Bahari não era muito dado a tagarelices sobre Deus, mas "achei bom, aprender inglês com uma pessoa religiosa", comenta ele. "aprendi palavras interessantíssimas."

    Mudou-se para o Canadá com 500 dólares no bolso. Trabalhou numa fábrica de pipoca, tomou conta de um bar, vendeu tapetes, foi garçom, e enquanto estudava cinema em Montreal, treinava fazendo filmes B. A certa altura para conseguir pagar seu aluguel morou com um poeta canadense, um engenheiro de elevadores húngaro, uma drag queen brasileira e uma stripper que estudava Direito.

    Escreveu seu primeiro documentário no Canadá, sobre refugiados judeus fugindo da Alemanha nazista.

    Lá por 1997, Bahari viu sinais de reforma no Irã. Quis voltar para casa. Chegando lá, fez freelances para a BBC e Canal 4, e foi credenciado como jornalista para a "Newsweek". Antes da prisão de Evin, Bahari se considerava um repórter que sabia seus limites para evitar as proibições do regime.

    Até que um dia se distraiu. A revolta da eleição de 2009 surpreendeu a maioria dos observadores – incluindo Bahari – e o regime também se amedrontou. Quando milhares de iranianos, especialmente mulheres, marcharam pelas ruas clamando que as eleições presidenciais haviam sido fraudadas, os clérigos foram pegos de surpresa. O líder supremo Ali Khamenei proibiu a presença dos repórteres independentes em todos os protestos. Blogueiros, freelancers e jornalistas não profissionais se arriscaram gravando e tuitando a violência crescente. Uma mulher, Neda Agha Soltan, levou um tiro e morreu no dia 20 de junho. Procure-a no Google hoje, em vídeos amadores, Youtube e Facebook pois a conversa continua. Bahari e outros foram presos em horas, e por alguns dias a história tornou-se viral. O regime tratou rapidamente de se proteger.

    Bahari sabe por seus interrogatórios que sua prisão foi provavelmente só uma ferramenta útil para os linhas duras iranianos. Foi rotulado na mídia estatal como um jornalista que trabalhava para o Ocidente e que havia tentado conspirar com a oposição. Permitiram que deixasse o Irã depois de pagar uma altíssima fiança, mas foi condenado in absentia por motivos de segurança máxima. Bahari não sabe com certeza porque foi solto. A gravidez da mulher, a poucos dias de dar a luz, talvez tenha sido um fator importante. "Eles me prenderam por quererem incriminar os reformadores do governo que estariam se comunicando com as embaixadas estrangeiras iranianas. Queriam que eu confessasse tê-los posto em contato com outros governos. Pelo menos, acho que era o plano deles".

    "Afinal de contas o que o governo do Irã, a Guarda Revolucionária e gente como Rosewater queriam era me dar medo. É o que todos os governos autoritários tentam fazer. Eu sabia que temê-los depois de solto – temê-los a quatro ou cinco milhas da fronteira iraniana – significaria a vitória deles", diz Bahari.

    "A minha experiência na prisão me fazia entender que eu tinha tempo e energia limitados. A minha ideia era: como usar essa energia e esse tempo do melhor modo possível?"

    "Queria ser um pai melhor para minha filha, um marido melhor para minha mulher, um amigo melhor para os amigos que me apoiavam. E também me perguntei: como posso ajudar os iranianos? O resultado é que estou mais focado nos temas importantes, menos tolerados e que requerem tratamento especial", adiciona.

    Em conversas recentes no Skype, Bahari sente que o assunto nuclear está mais leve – com novos aspectos que fariam com que o Irã reduzisse drasticamente o enriquecimento do urânio em troca da solução de sanções econômicas, temas vistos como um progresso verdadeiro tanto pela classe política quanto pelo presidente Hassan Rowhani e a mais nova geração. Há uma animação genuína em torno dessas possibilidades. Mas, que ninguém confunda as negociações com algum outro sentimento que não o pragmatismo. Um pacto nuclear é uma chance para a detente, para a distensão, assim como um passo para assegurar a estabilidade doméstica e dar uma abertura à economia. Num país de quase 80 milhões de pessoas, com a idade média abaixo de 30 anos – e a taxa de desemprego entre os jovens por volta de 30% – há fome de mudança.

    "O governo vê a negociação como um meio de sobrevivência. Sabe agora, depois de todos esses anos de conflito no Oriente Médio, que não precisa de armas nucleares para manter o poder. Tem aliados, tem xiitas onde precisam deles. A negociação nuclear está ajudando o governo a sobreviver", diz.

    "E o povo? Sabe que a democracia não chegará amanhã, mas que já há um passo positivo em direção a um país mais liberal. As pessoas estão com perspectivas muito maduras. São felizes. Querem ver o Irã como uma das nações do mundo. Cansaram-se de ser um Estado pária.".

    Bahari pesquisa direitos de minorias por meio de campanhas pela internet como educationisnotacrime.me, que detalha a perseguição dos bahais, a maior minoria do Irã. Procura também jornalistas nas prisões iranianas. Seu próximo filme será um colaboração com outro movimento de internet: My Stealthy Freedom, uma página do Facebook onde mulheres postam fotos sem lenços de cabeça.

    Ele sabe pelo "Forced Confessions" ("Confissões Forçadas", em português), seu filme de uma hora, uma réplica às suas próprias experiências, que estreou no Festival Internacional de Documentários de Amsterdam de 2012, que os documentários permitem que ele abra caminhos lentamente, sem excesso de agressividade. O filme foi catártico para ele. Também diminuiu a possibilidade do Irã de lançar mão de confissões forçadas.

    "O que fiz, pela primeira vez, foi deixar que as pessoas falassem sobre confissões forçadas. Muita gente guardava dentro de si esse assunto por vergonha de terem sido forçados a confessar. Como mostro no filme, sinto-me culpado por ter feito a confissão, mas ao mesmo tempo sei que nada fiz de errado. Superei meu sentimento de culpa com esse filme", relata Bahari.

    Quando "Forced Confessions", foi exibido na BBC Persa, o escândalo na Internet e a indignação dos telespectadores preocuparam o regime. A equipe da BBC e suas famílias foram questionadas; um apresentador de noticiário encontrou interrogadores ao lado da cama de seu pai, no hospital, numa ala de pacientes com câncer. Mas chegou também aos ouvidos de Bahari uma reação das autoridades, não publicada e inesperada. Um oficial que conhecia Bahari comentou que sua reportagem, mesmo vinda de longe "havia sido, de algum modo, muito eficaz".

    "Um iraniano, que precisa visitar seu interrogador regularmente, me contou que depois que o documentário foi exibido no Irã, o interrogador ficou bem transtornado e comentou: 'Esse Bahari! Ele na verdade nos f..... Esse filme dificultou e complicou bastante o nosso emprego'".

    Tradução NINA HORTA

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