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    Caso no Paraguai reaviva debate sobre aborto na América Latina

    SYLVIA COLOMBO
    DE SÃO PAULO

    17/05/2015 02h00

    O caso da menina de dez anos a quem foi negado um aborto no Paraguai não apenas levou outras mães a procurarem a Justiça por situações similares como aqueceu o debate sobre a prática em países da América Latina.

    A garota paraguaia foi estuprada pelo padrasto, foragido; a mãe, que denunciou o abuso e pediu a cirurgia da filha, foi presa como cúmplice.

    "Essa menina foi abandonada pelo Estado, que está lhe negando um direito, comprometendo sua vida e separando-a da mãe. Por sorte, com a repercussão internacional do caso, outras mulheres estão perdendo o medo e fazendo denúncias", afirmou à Folha a ativista e ex-candidata presidencial Lilian Soto.

    Mario Ruiz -25.jul.2014/Efe
    Ativistas chilenas participam de protesto pelo aborto 'livre e gratuito'; prática é proibida em qualquer situação no país
    Chilenas fazem protesto por aborto 'livre e gratuito'; prática é proibida em qualquer situação no país

    "O governo quer tratar esse crime de forma isolada, mas a realidade está sendo mais forte", acrescentou ela.

    O aborto é proibido no Paraguai, exceto quando representa risco à vida da mãe.

    Familiares da menina, que pesa 34 kg e mede 1,39 m, afirmam que o caso se enquadra na lei, mas o governo não aceita o argumento. Na prática, a legislação jamais foi aplicada com relação a uma menor de idade grávida.

    O ministro de Saúde Pública, Antonio Barrios, ex-médico particular do presidente conservador, Horacio Cartes, descartou a possibilidade de realizar o procedimento devido ao estágio da gestação (cinco meses) e reafirmou que a garota não corre riscos.

    "Este ministro está em desacordo com o aborto. Além disso, já não é mais possível realiza-lo", declarou. Associações de direitos humanos alegam que, se o pedido fosse considerado quando a denúncia foi feita, haveria tempo para a realização segura do procedimento.

    No Paraguai, outros casos que surgiram na sequência desse foram o de uma garota de 12 anos que, segundo sua madrasta, engravidou do próprio pai biológico em Itapúa e outra de 13 que foi violada na saída da escola, em Mariano Roque Alonso. Os pedidos de ambas para abortar também foram negados.

    Hoje, três países latino-americanos proíbem o aborto em qualquer situação: Chile, El Salvador e Nicarágua.

    Muitos garantem na lei o procedimento em casos de risco à vida da mãe, má-formação do feto e estupro (Brasil, Colômbia, Peru), mas há vários em que o acesso é restrito, apesar de a legislação existir para alguns dos casos acima descritos (Bolívia, Paraguai, Argentina).

    No Chile, dois casos deram nova vida ao debate recentemente. Uma mulher de 28 anos, com câncer e grávida de um feto anencéfalo, teve o aborto negado, assim como a menina Belén, de 11, estuprada pelo padrasto.

    Editoria de Arte/Folhapress

    Pressão internacional e campanha de grupos pró-direitos humanos levaram a presidente Michelle Bachelet a prometer enviar ao Congresso um projeto permitindo o procedimento para casos de violação, má-formação do feto ou risco à vida da mãe.

    Já em El Salvador, a Anistia Internacional e outras entidades pressionam pela liberação do grupo "Las 17" –mulheres que alegam ter tido abortos naturais, mas que, denunciadas pelos médicos que as atenderam, foram condenadas a penas de mais de 30 anos de prisão.

    A lei salvadorenha, considerada a mais severa, prevê punições não só às mães como também a familiares e médicos que encubram ou auxiliem no procedimento.

    Em março, Carmen Guadalupe Vázquez Aldana, 28 e presa por uma década, teve a pena revista, alegando ter sofrido um aborto natural. Estava condenada a 30 anos.

    LEI URUGUAIA

    Apenas quatro países da América Latina permitem o aborto sem que seja necessário apresentar justificativa, até a 12ª semana de gestação: Uruguai, Guiana, Porto Rico e Cuba. Na Cidade do México, o procedimento também é permitido nessas condições, mas a legislação não se aplica aos outros Estados.

    A lei uruguaia foi aprovada em 2012, durante a gestão do presidente José "Pepe" Mujica, da Frente Ampla.

    "Não é lei pró-aborto, e sim de proteção à vida da mulher. Trabalhamos com a ideia de reduzir danos e amparar as mulheres. Abandoná-las, principalmente as que têm menos condições financeiras, é covardia e irresponsabilidade", diz à Folha o ex-subsecretário de Saúde Leonel Briozzo, responsável pela aplicação da lei no Uruguai.

    No país, a mulher pode decidir sozinha sobre a interrupção da gravidez, mas passa por orientação psicológica e deve aguardar cinco dias após o primeiro atendimento, considerado tempo "para reflexão". A maioria dos abortos é realizada por meio da ingestão de remédios.

    O Ministério da Saúde uruguaio, porém, tem tido de lidar com a recusa de 30% dos médicos do país, principalmente nas províncias do interior, que alegam "objeção de consciência" para não praticar o aborto.

    "Há uma pressão indevida do Ministério da Saúde contra os médicos que se recusam a realizar a operação", afirma Carlos Iafigliola, do Partido Nacional.

    O ex-subsecretário Briozzo responde: "A objeção de consciência está sendo respeitada. O que o governo está fazendo é enviar médicos de Montevidéu para atendê-las".

    No primeiro ano de validade da lei no Uruguai, foram realizados legalmente 6.676 abortos. No segundo, 8.599.

    Críticos da medida e partidos opositores ao governo da Frente Ampla sugerem que o número pode crescer muito mais nos próximos anos e pedem a revisão da lei.

    O conservador Pedro Bordaberry, ex-candidato presidencial pelo Partido Colorado, considera que seria possível formular outras propostas. "É possível estimular a adoção, por exemplo, mas evitar o aborto a qualquer custo", disse à Folha.

    Já o atual presidente, Tabaré Vázquez, que é médico e pessoalmente contra o aborto, havia tentado impedir a aprovação da lei em sua primeira gestão (2005-10), mas não conseguiu reunir as assinaturas necessárias.

    Com base no aumento de casos e na esperança de convencer Vázquez a revogar a medida, parlamentares dos partidos Nacional e Blanco têm se pronunciado.

    Por enquanto, o presidente, que é da mesma legenda de Mujica, afirma que vai manter as decisões aprovadas pela gestão anterior.

    Leonel Briozzo avalia que os casos recentes no Paraguai e em El Salvador servem de reflexão sobre o comprometimento dos médicos com as suas pacientes.

    "Até aqui, temos visto muitos médicos denunciarem as mães que tiveram um aborto natural ou que não sabem o que fazer. O compromisso de um médico é sempre com seu paciente. É uma imoralidade que, em vez de ajudá-las, permitam que elas sejam presas e punidas."

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