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    Vi uma família ser espancada até a morte no barco, diz imigrante asiático

    KATE LAMB
    DO "GUARDIAN", EM LANGSA (INDONÉSIA)

    18/05/2015 12h11

    Amontoados debaixo de tendas de lona cheias de lixo e caixas de água, os imigrantes birmaneses e bengaleses relatam os horrores pelos quais passaram no mar. Falam de assassinatos, de imigrantes que mataram uns aos outros na disputa pela comida e água escassa, de corpos atirados ao mar.

    "Uma família foi espancada até morrer com tábuas de madeira do barco -um pai, uma mãe e o filho deles", conta Mohammad Amin, 35. "Depois jogaram os corpos deles no mar."

    Amin, muçulmano da etnia rohingya, subiu em uma embarcação de Mianmar inicialmente três meses atrás. Agora ele é um dos 677 migrantes abrigados temporariamente em um acampamento improvisado ao lado do porto em Langsa, Indonésia, depois de passarem meses vagando no mar de Andaman.

    Para chegar até esse acampamento foi preciso uma luta de proporções épicas. Enquanto governos de toda a região se negaram a deixar os migrantes entrar em seus países, e suas Marinhas os mandaram embora, o barco deles acabou sendo resgatado na sexta-feira por pescadores da província de Aceh (Indonésia), que o rebocaram para o porto de Langsa.

    Agora, pelo menos, eles estão em terra firme. Acredita-se que outros 6.000 a 8.000 imigrantes estejam ilhados ao largo da Tailândia, Indonésia e Malásia, com pouca água potável e comida, numa situação que as Nações Unidas avisam que pode rapidamente converter-se em uma "crise humanitária de proporções enormes", porque nenhum governo da região está disposto a recebê-los.

    Mohammad Rafique, 21, conta que quando o barco em que ele estava chegou a águas da Indonésia, na semana passada, a Marinha deu comida e água aos imigrantes. "Depois nos perguntaram: 'Para onde vocês vão agora?'. Dissemos: 'Vamos para a Malásia.' A Marinha indonésia falou: 'Vão para a Malásia' e nos levou até a fronteira da Malásia."

    Na Malásia, tiveram a mesma recepção.

    Na ala hospitalar do acampamento em Langsa, vários homens estão deitados lado a lado sobre macas, recebendo soro em seus braços magros. Um dos homens está sem camisa, e veem-se cortes vermelhos profundos em suas costas.

    "Eles nos atacaram com martelos, com facas, cortando", conta Rafique, recordando a violência a bordo dos barcos entre os diferentes grupos de imigrantes. Ele mostra seu único pertence: um cartão de identidade rohingya emitido em Bangladesh pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.

    Muitos dos imigrantes nos barcos fazem parte da minoria perseguida dos rohingyas, que vivem no norte de Mianmar, onde lhes é negado o direito à cidadania ou ao voto, apesar de muitos viverem no país há gerações.
    No país de maioria budista, os rohingyas continuam a fugir da violência sectária e das condições de miséria nos campos de refugiados.

    Em Langsa, Amin, ex-lavrador em Myanmar, conta que seu vilarejo foi incendiado alguns anos atrás em um ataque violento. Sua mãe morreu queimada porque era velha demais para fugir.

    "O governo está nos torturando", afirma Zukura Khotun, que tem três filhos. Ela fugiu do Estado de Rakhine, em Mianmar, e embarcou no barco de migrantes na esperança de chegar à Malásia e reencontrar seu marido.

    Outros no acampamento que vêm de Bangladesh também se apressam a identificar-se como muçulmanos rohingyas, dizendo que estavam viajando à Malásia em busca de trabalho, para se casar ou para se reunir com familiares.

    Ninguém sabe dizer ao certo quantas pessoas morreram no barco. Rafique, que afirma ter passado sua vida toda em um campo de refugiados em Bangladesh até iniciar a viagem por mar, diz que até 200 pessoas morreram na viagem.

    Mas é impossível corroborar os relatos dos imigrantes imediatamente.

    Sayed Oestman, diretor do comitê de desenvolvimento de Langsa, diz que ainda há tensões palpáveis entre os dois grupos de imigrantes, que, depois dos enfrentamentos acirrados a bordo do barco, continuam divididos no acampamento.

    "Pelo que ouvimos dos bengaleses, eles são trabalhadores e seu plano é ir para a Malásia", diz Oestman. "Os rohingyas de Mianmar dizem estar fugindo de conflitos em seu país."

    Na última semana, mais de mil pessoas chegaram à costa de Aceh em embarcações decrépitas.

    BARRACAS

    Dentro das barracas em Langsa, as mulheres dão de mamar aos filhos enquanto tomam água ou caixinhas de leite achocolatado. As fogueiras acesas para queimar lixo enviam o cheiro de plástico queimado para onde elas estão.

    Voluntários indonésios estão montando cubículos sanitários de compensado, e uma pilha de roupas de segunda mão foi jogada no chão. Oestman diz que há necessidade urgente de medicamentos e vitaminas no acampamento. Vinte e cinco migrantes foram internados no hospital local.

    Na rua que leva ao acampamento, moradores locais curiosos e preocupados se reuniram diante do portão para tentarem ver os recém-chegados. Alguns são autorizados a entrar para levar pacotes de macarrão instantâneo e caixas de ovos.

    Ismail Hanifah, 62, de Langsa, está visitando o acampamento pela segunda vez para checar a situação em que estão os imigrantes que são muçulmanos, como ele.

    "Quando eu os vi ontem, eles estavam como animais. Não tinham roupas, nem nada", ele explica. "Falei 'Assalamualaikum' a eles, e todos começaram a chorar. Estavam famintos. Ouvi alguém de Bangladesh contar que, para sobreviver, eles beberam sua própria urina."

    É difícil obter informações concretas sobre o período que os imigrantes passaram no mar. Mas a maioria dos que estão em Langsa conta que eles foram transportados de Mianmar e Bangladesh em barcos pequenos e então transferidos para uma embarcação maior atracada ao largo de Ranong, no sul da Tailândia.

    Alguns ficaram aguardando lá por até dois meses, outros por apenas uma semana, para a embarcação maior encher e eles poderem partir. Os tripulantes eram tailandeses e birmaneses. Para fazer a viagem, a maioria dos imigrantes pagou entre 5.000 e 8.000 ringitts malasianos (R$ 5.900 e R$ 9.500) para agentes de traficantes de pessoas.

    Eles passaram 25 dias no mar, vivendo dos alimentos mínimos que receberam das Marinhas indonésia e malasiana, depois de o capitão e os tripulantes os terem abandonado. Amin contou que eles dormiam agachados lado a lado no navio e se esforçavam para poupar alimentos e água para as mulheres e crianças que estavam a bordo.

    Mas eles estavam sedentos, esfomeados e desesperados, e começaram a irromper brigas na embarcação.

    "Quando o capitão e os tripulantes fugiram, nos abandonando, eu chorei", conta Amin. "Um homem de Bangladesh falou: 'O capitão fugiu, precisamos orar a Alá'. Mas não havia espaço suficiente para nos ajoelharmos para rezar."

    Tradução de CLARA ALLAIN

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