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    Migrantes africanos arriscam tudo no Saara para chegar à Europa

    DANIEL FLYNN
    DA REUTERS, EM AGADEZ (NÍGER)

    29/05/2015 13h05

    Em um pátio arenoso em Agadez, cidade localizada no deserto do Níger, um imã de turbante branco abençoa um círculo de migrantes, alguns dos quais pouco mais que meninos, a fim de protegê-los em sua jornada através do Saara e rumo à Europa.

    Um contrabandista então dá o sinal e os migrantes saltam para uma Toyota Hilux, lutando por espaço na viagem de 1,2 mil quilômetros até Sabha, no sul da Líbia —um percurso assediado por bandidos e pelo sol impiedoso do deserto.

    Akintunde Akinleye/Reuters
    Imigrantes lotam um caminhão que deixa Agadez, no Níger, em direção a Sabha, na Líbia
    Migrantes lotam um caminhão que deixa Agadez, no Níger, em direção a Sabha, na Líbia

    Dezenove homens se empilham na picape para a viagem de três dias. Os que se acomodam na beira da caçamba posicionam as pernas dos dois lados de uma tábua, para impedi-los de cair durante a noite no Saara.

    As cerca de 2.000 mortes de migrantes nas águas do Mediterrâneo entre a Líbia e a Europa levaram os alarmados governos europeus a reforçar as patrulhas marítimas, a fim de deter o influxo de pessoas vindas de barco da Líbia, um país que vive completo caos desde que rebeldes derrubaram Muammar Gaddafi em 2011.

    Mas a Organização Internacional para Migrações (OIM) alerta que número pelo menos igual pode morrer durante a longa travessia do deserto iniciada no Níger, o principal ponto de partida para os africanos ocidentais que buscam cruzar o Mediterrâneo.

    A despeito da aprovação de uma nova e severa lei contra o tráfico de pessoas no Níger, cerca de 100 mil migrantes fugindo da severa pobreza em seus países e esperando encontrar vida melhor na Europa devem cruzar as fronteiras desse país oeste-africano este ano. Muitos deles passarão por locais operados por contrabandistas e conhecidos como "guetos".

    "É meio assustador, mas preciso enfrentar essa situação porque na vida é preciso ser corajoso", disse Fousseni Ismael, 16, usando um lenço azul de cabeça para se proteger do sol, enquanto esperava para subir na picape.

    Quando a noite cai, a picape deixa o posto dos contrabandistas e ziguezagueia pelas ruas arenosas de Agadez, passando por grupos de muçulmanos ajoelhados para as orações noturnas. Ela passa sem ser parada por um posto policial na saída da cidade e penetra a escuridão do imenso deserto.

    Os riscos são imensos. Mohamed, um motorista, conta ter sido atacado na semana passada por bandidos tuaregues armados com fuzis AK-47, que dispararam contra sua picape quando ele se recusou a parar, ferindo um dos passageiros na perna.

    Para fins de proteção, dezenas de picapes e caminhões seguem um comboio militar que se encaminha ao norte a cada segunda-feira, rumo ao oásis de Dirkou.

    A morte de 92 migrantes —quase todos mulheres e crianças— por sede quando seu veículo quebrou no caminho entre a Argélia e o oeste da Líbia, em 2013, levou as autoridades do Níger a conduzir uma breve campanha de repressão ao corredor pelo qual circulam os migrantes —mas o lucrativo comércio não demorou a retornar.

    "O deserto sempre foi um cemitério para os migrantes, de silêncio e completa indiferença. Os viajantes nos contam que é comum encontrar corpos —esqueletos desgastados pela areia", diz Rhissa Feltou, o prefeito de Agadez.

    AUSÊNCIA

    O contrabando há muito é um meio de vida em Agadez, antigo ponto de parada de caravanas. As ruas estão repletas de carros roubados na Líbia, cujas fronteiras estão em geral desprotegidas, e os moradores locais falam discretamente sobre os comboios de drogas que cruzam o deserto.

    A lei aprovada este mês, sob pressão dos países doadores da União Europeia, inclui sentenças de até 30 anos de prisão para aqueles que buscarem lucrar com o transporte dos migrantes.

    Akintunde Akinleye /Reuters
    Imigrantes ilegais esperam um ônibus para deixar a capital do Níger, Niamey, para a cidade de Agadez
    Imigrantes ilegais esperam um ônibus para deixar a capital do Níger, Niamey, para a cidade de Agadez

    Mas, com o colapso do turismo estrangeiro devido à ascensão de grupos islâmicos armados no Saara, os contrabandistas dizem que não há muito mais que possam fazer para ganhar dinheiro.

    A lei levou os contrabandistas de Agadez a esconder suas operações, mas não existem sinais de que o fluxo de pessoas que passam pela cidade esteja diminuindo.

    "Os guetos? Não dá para contá-los nos dedos de uma mão. Todo mundo trabalha com isso, porque é a única coisa que funciona", disse David Ousseni, o homem que controla o posto de transporte que visitei.

    "Damos às pessoas um local de repouso antes que partam. Assim que temos uma carga completa de passageiros, chamamos o motorista", disse.

    O contrabando de pessoas traz milhões de dólares a Agadez. Os cerca de 30 homens que vi partirem do gueto de Ousseni pagaram cada qual 150 mil francos CFA (US$ 250) pela viagem até Sabha. Incluindo comida, hospedagem e subornos, um migrante pode gastar até 250 mil francos CFA só para cruzar o Níger, diz.

    Lamine Bandaogo, 17, de Burkina Faso, disse que a polícia extorque dinheiro dos migrantes em postos de patrulha, durante a jornada da capital do Níger, Niamey, a Agadez, exigindo até 10 mil francos CFA para autorizar a passagem.

    Ainda que os oeste-africanos tenham o direito de viajar livremente pelo Níger, muitos se recusam a mostrar seus documentos por medo de que sejam confiscados pela polícia. Bandaogo viu na televisão cenas de morte de migrantes no mar, mas prefere arriscar a vida a enfrentar a destrutiva pobreza em seu país.

    "Vimos aquilo, mas o que podemos fazer? Todo mundo tem seu destino. Você não sabe onde vai morrer", disse.

    CONTRABANDO

    Um relatório policial de 2003 visto pela Reuters identificava pelo menos 70 guetos em Agadez, muitos dos quais segregados por nacionalidade para viajantes da Nigéria, Senegal, Gana ou Mali, e operando com a cumplicidade das forças locais de segurança.

    Muitos dos guetos ficam nas ruas sujas do subúrbio, em casas baixas e de paredes de barro vermelho, sem janelas e com portões metálicos que apenas ocasionalmente permitem vislumbrar os jovens do lado de dentro.

    Editoria de Arte/Folhapress

    Alguns dos contrabandistas de pessoas são eles mesmos migrantes cujo dinheiro acabou e começaram a trabalhar a fim de acumular dinheiro suficiente para o resto do percurso.

    Para aqueles que chegam à Líbia, as condições podem ser ainda piores. Os migrantes contam histórias de aprisionamento por contrabandistas até que suas famílias, em seus países de origem, transfiram o dinheiro do resgate para libertá-los.

    "Na Líbia se vê de tudo. Os contrabandistas exigiram que meu amigo lhes desse dinheiro, ele recusou, e por isso eles o mataram a tiros", conta Nfamara Diawara, 36, que está viajando de volta ao seu país, o Senegal, porque não conseguiu juntar dinheiro suficiente na Líbia para seguir viagem à Europa.

    Um centro de trânsito da OIM em Agadez para os migrantes de retorno recebeu cerca de uma dúzia de pessoas com fraturas ou ferimentos a bala, de acordo com seu diretor, Maliki Hamidine.

    Giuseppe Loprete, diretor da divisão da OIM no Níger, diz que os contrabandistas às vezes praticam abusos físicos e sexuais contra os migrantes e muitas vezes os abandonam para morrer no deserto caso não possam pagar ainda mais para continuar a jornada.

    Feltou, o prefeito de Agadez, disse que o tráfico de pessoas alimentava crimes e problemas sociais, entre os quais banditismo, tráfico de drogas e prostituição, em sua cidade.

    Amina, 26, da Nigéria, disse que estava trabalhando como prostituta em Agadez até que conseguisse juntar dinheiro suficiente para voltar para casa e abrir um negócio.

    "Se um dia eu tiver de ir à Europa, irei de avião", disse Amina, mãe de duas crianças, que estava sentada no pátio de uma casa baixa de paredes de barro vermelho, e tinha os cabelos presos em uma rede. "Tenho medo do deserto. Gente demais morre".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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