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    Preso de Guantánamo acusa CIA de tortura e abuso sexual

    DAVID ROHDE
    DA REUTERS, EM NOVA YORK (EUA)

    03/06/2015 12h51

    A CIA (Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos) aplicou uma gama maior de abusos sexuais e outras formas de tortura do que as que foram reveladas em um relatório do Senado no ano passado, segundo um detento de Guantánamo que hoje é testemunha e que está cooperando com o governo americano.

    Majid Khan disse que interrogadores derramaram água gelada sobre sua genitália, duas vezes o filmaram nu e tocaram suas "partes íntimas" repetidamente. Nada disso constou do relatório do Senado. Os interrogadores, alguns deles cheirando a álcool, teriam ameaçado batê-lo com um martelo, tacos de beisebol, paus e cintos de couro.

    O relato de Khan é o primeiro a ser divulgado publicamente de um detento de "alto valor" da Al Qaeda submetido às chamadas "técnicas de interrogatório intensificadas" da administração do presidente George W. Bush após os ataques de 11 de setembro de 2001 contra os Estados Unidos.

    O relato está contido em 27 páginas de anotações compiladas por seus advogados em entrevistas com ele nos últimos sete anos. O governo americano liberou as anotações para serem divulgadas no mês passado, após um processo formal de revisão.

    Antes do relatório do Senado de dezembro passado que detalhou os métodos de interrogatório empregados pela agência, a CIA proibia detentos e seus advogados de descreverem publicamente as sessões de interrogatório, considerando classificadas as recordações dos detentos sobre o que viveram.

    As alegações de tortura feitas por Khan não puderem ser confirmadas por fontes independentes. Autoridades da CIA disseram acreditar que Khan mentiu repetidamente nos interrogatórios.

    Cidadão paquistanês que cursou a escola secundária em Maryland, Khan, 35 anos, aguarda ser sentenciado. Em 2012 ele confessou ser culpado de conspiração, apoio material, homicídio e espionagem. Em troca de servir como testemunha do governo, ele será sentenciado a até 19 anos de prisão. A sentença começará a ser contada na data de sua confissão de culpa.

    Khan confessou ter entregue US$50 mil (cerca de R$ 150 mil) a agentes da Al Qaeda na Indonésia. O dinheiro foi usado posteriormente para realizar o ataque com caminhão-bomba contra o hotel Marriott em Jacarta em 2003, que deixou 11 mortos e pelo menos 80 feridos. Khan também confessou ter conspirado com Khalid Sheikh Mohammed, o cérebro por trás do 11 de setembro, para envenenar reservatórios de água, explodir postos de combustíveis e atuar como "agente dormente" (que passa anos infiltrado como "dormente", até entrar em ação) da Al Qaeda nos Estados Unidos.

    Khan foi capturado no Paquistão e mantido entre 2003 e 2006 em um centro não oficial de detenção da CIA, segundo o relatório do Senado. Seus advogados se negaram a dizer onde ele foi capturado ou mantido detido, dizendo que essas informações continuam classificadas.

    DESEJO DE MORTE

    Nas entrevistas a seus advogados, Khan descreveu um ambiente de abusos desregrados que teria encontrado ao chegar ao centro de detenção da CIA.

    "Eu queria que me tivessem matado", Khan falou aos advogados. Ele disse que sentia dor lancinante quando era pendurado nu de postes e que guardas repetidas vezes mergulhavam sua cabeça à força em água gelada.

    "Filho, vamos cuidar de você", os interrogadores lhe diziam, segundo Khan. "Vamos mandá-lo para um lugar que você nem sequer consegue imaginar."

    Ex-funcionários e funcionários atuais da CIA se negaram a comentar o relato.

    A descrição que Khan fez do que viveu corresponde a algumas das descobertas mais perturbadoras contidas no relatório apresentado ao Senado americano, fruto de uma revisão feita por membros do Partido Democrata de 6,3 milhões de documentos internos da CIA, ao longo de cinco anos. Funcionários da CIA e muitos republicanos consideraram as conclusões do relatório exageradas.

    Shane T.McCoy/AP
    Prisioneiros acusados de terrorismo são mantidos ajoelhados na prisão de Guantánamo
    Prisioneiros acusados de terrorismo são mantidos ajoelhados na prisão de Guantánamo

    Anos antes de o relatório ser divulgado, Khan se queixou a seus advogados de ter sido submetido repetidas vezes a alimentação retal forçada. Investigadores do Senado encontraram documentos internos da CIA confirmando que Khan recebeu alimentação e hidratação retal involuntária. Em um incidente amplamente divulgado pela mídia após a divulgação da investigação do Senado, telegramas da CIA mostraram que o almoço de Khan, composto de húmus, macarrão com molho, nozes e uvas passas, foi "liquefeito e administrado pelo reto".

    A CIA alega que a alimentação retal tornou-se necessária depois de Khan fazer greve de fome e arrancar uma sonda de alimentação inserida em seu nariz. Investigadores do Senado disseram que Khan cooperou e não removeu a sonda nasal.

    A maioria dos especialistas médicos diz que a alimentação retal não possui valor terapêutico. Os advogados de Khan a descrevem como estupro.

    Khan disse a seus advogados que algumas das piores torturas ocorreram em um interrogatório em maio de 2003, quando guardas o deixaram nu, o penduraram de uma barra de madeira por três dias e lhe deram água, mas não comida. O único momento em que ele foi retirado da barra foi na tarde do primeiro dia, quando os interrogadores o acorrentaram, encapuzaram e o mergulharam em uma banheira de água gelada.

    Um interrogador então mergulhou a cabeça de Khan debaixo d'água, até o prisioneiro ter medo de se afogar. Então ele tirou a cabeça de Khan da água, exigiu respostas e novamente a mergulhou na água. Guardas derramavam água e gelo de um balde na boca e no nariz de Khan.

    Em seguida, Khan foi novamente pendurado na barra, encapuzado e nu. A cada duas ou três horas os interrogadores jogavam água gelada sobre seu corpo e direcionavam um ventilador sobre ele, impedindo-o de dormir. Uma vez, depois de passar dois dias pendurado da barra, Khan começou a ter alucinações, pensando estar vendo uma vaca e um lagarto gigante.

    "Eu passava todos os momentos de todos os dias ansioso, com pavor do desconhecido", disse Khan, descrevendo os pesadelos e ataques de pânico que sofria no centro de detenção irregular. "Às vezes eu sonhava que estava me afogando ou que estava conduzindo um carro e não conseguia frear."

    Khan disse que, em uma sessão em julho de 2003, guardas da CIA o encapuzaram e o penduraram de uma barra metálica por vários dias, repetidas vezes jogando água gelada em sua boca, seu nariz e sua genitália. Em dado momento, ele disse, os guardas o forçaram a ficar sentado nu sobre um caixote de madeira durante um interrogatório filmado de 15 minutos. Depois disso ele foi acorrentado a uma parede, de modo que era impossível dormir.

    Quando um médico chegou para verificar sua condição, Khan disse que suplicou por ajuda. Em vez disso, o médico teria instruído os guardas a pendurá-lo novamente da barra. Depois de passar 24 horas pendurado da barra, ele foi forçado a escrever uma "confissão" enquanto era filmado, nu.

    ALGEMAS DE METAL

    O relato de Khan inclui formas de abuso supostamente cometidas pela CIA e que não tinham sido reveladas até agora, segundo especialistas. Khan disse que seus pés e a parte inferior das pernas eram colocadas em algemas altas, com formato semelhante a botas, que o apertavam e imobilizavam. Ele sentia que suas pernas seriam fraturadas se ele caísse para frente enquanto estavam presas nessas algemas.

    Khan não é uma das três pessoas que, segundo antigos e atuais agentes da CIA, os interrogadores foram autorizados a submeter ao "falso afogamento", no qual água é jogada sobre um pano que cobre o rosto do prisioneiro, para criar a sensação de afogamento. E ele tampouco é o quarto prisioneiro cuja tortura pelo falso afogamento foi documentada em 2012 pela Human Rights Watch.

    Mas os fatos que ele descreve coincidem com as descrições feitas por outros prisioneiros que alegaram ter sido submetidos a técnicas de interrogatório não autorizadas usando água. Grupos de defesa dos direitos humanos dizem que a submersão forçada em água gelada e jogar água gelada sobre o corpo de um detento é tortura.

    Brendan Smialowski - 30.jul.2013/AFP
    Ativistas pelo fechamento de Guantánamo simulam alimentação forçada nos EUA
    Ativistas pelo fechamento de Guantánamo simulam alimentação forçada nos EUA

    O relato de Khan também inclui detalhes que correspondem aos de detentos menos importantes que descreveram seus próprios interrogatórios. Como outros prisioneiros, Khan disse que era mantido na escuridão total e isolado por períodos prolongados. Para impedi-lo de dormir, seus captores mantinham acesas as luzes em sua cela e tocavam música do Kiss e outros grupos americanos de rock e rap, em alto volume.

    Ele disse que recebia alimentos e água sujos que lhe davam diarreia e era mantido em uma cela ao relento e em celas com insetos que o picavam. Outros prisioneiros lhe contaram mais tarde que foram colocados em caixas no formato de féretros.

    As condições melhoraram significativamente em 2005, depois de o Congresso americano aprovar a Lei de Tratamento de Detentos. A lei inclui as medidas antitortura apresentadas pelo senador John McCain, que foi torturado quando foi feito prisioneiro de guerra no Vietnã.

    A sentença de Khan deve ser anunciada até fevereiro por um juiz militar em Guantánamo. Mas seus advogados querem que seu processo seja transferido para as cortes federais dos EUA, porque, disseram, as leis federais permitem sentenças mais justas para testemunhas que cooperam com o governo.

    "Ele tomou a decisão de confiar e cooperar com o governo dos EUA, para tentar reparar o que fez", disse J. Wells Dixon, do Centro para os Direitos Constitucionais. "Cabe aos Estados Unidos lhe garantir tratamento justo."

    Katya Jestin, ex-promotora federal que também representa Khan, disse que Khan continua decidido a cooperar com o sistema de comissões militares. Mas, ela disse, "desde uma perspectiva mais ampla de justiça criminal, eu gostaria de vê-lo sentenciado por uma corte federal americana. Os juízes federais têm mais experiência na avaliação do valor da cooperação e em incentivar a cooperação de outros."

    O Departamento de Justiça e os promotores militares se negaram a dar declarações.

    Tradução de CLARA ALLAIN

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