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    Caso Nisman resume problemas institucionais da Argentina

    FEDERICO FINCHELSTEIN
    ESPECIAL PARA A FOLHA, DE NOVA YORK

    06/06/2015 19h00

    Quase quatro meses depois da misteriosa morte do promotor Alberto Nisman, que havia denunciado a presidente Cristina Fernández de Kirchner, e após o governo surpreendentemente esquecer a promessa de investigar o que aconteceu, o caso voltou ao centro das discussões na Argentina e isso acontece a só quatro meses das eleições presidenciais.

    Marcos Brindicci - 29.mai.2013/Reuters
    O promotor argentino Alberto Nisman
    O promotor argentino Alberto Nisman

    No programa jornalístico mais famoso da TV argentina, "Periodismo para Todos", do jornalista Jorge Lanata, os argentinos viram um vídeo da cena do crime –que Lanata definiu como assassinato– que demonstra a inépcia e a contaminação de provas a poucas horas de morte de Nisman.

    A promotora que pisa o sangue do colega morto com suas sandálias. A pistola ensanguentada que um perito limpa sem razão alguma com papel higiênico e que perde impressões digitais a serem investigadas.

    Muitíssima gente no local, às vezes tocando em provas sem luvas. Além disso, a intromissão de um importante funcionário do governo –o secretário de Segurança, Sergio Berni– nos primeiros momentos da investigação.

    Berni chegou antes da promotora Viviana Fein, responsável pelo caso, e disse ter ido ao local para preservar a cena do crime. Também se soube que foram usados três pen drives no computador do promotor oito horas após sua morte, mas horas antes da chegada da polícia a seu apartamento.

    O vídeo é um sintoma dos problemas institucionais da Argentina: falta de divisão de poderes, falta de seriedade e crimes que ficam impunes.

    Reprodução
    Perito segura arma encontrada em local da morte do promotor Alberto Nisman
    Perito segura arma encontrada em local da morte do promotor Alberto Nisman

    Nisman foi encontrado morto em 18 de janeiro, um dia antes de ter prometido entregar provas ao Congresso sobre a responsabilidade da presidente no encobrimento da investigação do atentado à Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), no qual morreram 85 pessoas em 1994.

    Ele havia prometido provas da suposta intenção presidencial de oferecer a "inocência" aos acusados iranianos em troca de petróleo. Sua morte impediu que isto acontecesse, mas o crime continua definindo a política argentina e a falta de justiça.

    O retorno do caso Nisman às capas dos jornais argentinos surpreende não tanto pela volta de uma notícia que definiu o verão argentino como uma crise de época, mas por sua prolongada ausência nos debates entre os principais candidatos presidenciais.

    Os candidatos governistas preferem o silêncio talvez para não ter que explicar a morte misteriosa e a inação do governo que promoveu o descrédito da investigação feita por Nisman e fazer uma campanha de difamação pública do morto como se sua vida pessoal tivesse algo a ver com suas denúncias.

    Inclusive, o governo chegou a sugerir que a imprensa, em particular o jornal "Clarín", estava relacionada com uma conspiração para manipular o promotor e prejudicar o governo. Concretamente, falar da morte era para o governo uma estratégia opositora.

    Mais surpreendente ainda é a falta de interesse entre os presidenciáveis opositores mais bem posicionados nas pesquisas: os conservadores Mauricio Macri (direitista e próximo ao peronismo conservador) e Sergio Massa (peronista opositor).

    Apenas a candidata progressista Margarita Stolbizer falou sobre o tema. Mas, em geral, para os políticos governistas e opositores, o caso Nisman não parece ser um tema importante como também não parece ser relevante a relação central com Brasil, Uruguai, Estados Unidos ou a comunidade europeia.

    As eleições presidenciais argentinas parecem se definir pelo interesse dos candidatos populistas do governo e da oposição de se denegrirem mutualmente, aparecerem na televisão contando piadas ou dançando.

    A falta de programas ou ideias define uma campanha presidencial muito argentina, em que as questões de Estado e de Justiça não são tema de discussão.

    A morte de Nisman também se insere como símbolo e como sintoma em uma longa história argentina. Tradicionalmente, os argentinos não confiam no Estado e muito menos em seus governantes.

    O que acontece no mundo oficial, independentemente de quem sejam seus governantes, é motivo de suspeita por parte de uma sociedade civil rica em contradições cidadãs. Uma sociedade muitas vezes sofisticada que reclama de seus políticos, mas vota neles, se resigna e dá as costas ao Estado.

    Já escrevia o escritor Jorge Luis Borges em 1946: "O argentino não se identifica com o Estado. A isso podemos atribuir o fato de que, neste país, os governos costumam ser péssimos ou o fato geral de que o Estado é uma abstração inconcebível. O que é certo é que o argentino é um indivíduo, não um cidadão".

    Seguindo o raciocínio, Borges acrescentou que os argentinos acreditam justamente na existência de um herói solitário que, vindo do Estado, luta contra a injustiça e as forças oficiais.

    A realidade é com certeza mais complexa que as simplificações e estereótipos de Borges. Mas na Argentina de hoje muitos parecem dividir a imagem de um solitário que, surgido nas filas estatais, promete lutar contra a injustiça oficial e contra uma elite que detém o poder.

    Como disse Borges, esta é com certeza a figura do herói argentino por antonomásia. O gaúcho Martín Fierro e outros ícones argentinos dão força a esse sintoma dividido de falta de justiça. Um sintoma em que parecem se inserir a morte de Nisman e as eleições presidenciais.

    FEDERICO FINCHELSTEIN é diretor do Departamento de História da New School for Social Research e do Lang College em Nova York

    Tradução de DIEGO ZERBATO

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