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    Fome crescerá na Venezuela se escassez persistir, diz FAO

    SAMY ADGHIRNI
    DE CARACAS

    12/06/2015 02h00

    Uma semana após a FAO (braço da ONU para Alimentação e Agricultura) reconhecer a Venezuela como um dos países que mais avançaram na luta contra a fome, o representante da agência em Caracas, o mineiro Marcelo Resende, admitiu que os avanços estão em risco.

    Em entrevista à Folha, Resende prevê aumento da fome caso o desabastecimento e a inflação [de quase três dígitos] se prorrogarem por mais de um ano.

    O representante da FAO, que foi presidente do Incra no início do governo Lula, defendeu o modelo de gestão venezuelano, mas negou ser alinhado ao chavismo.

    Fabiola Ferrero/Folhapress
    O brasileiro Marcelo Resende, representante da FAO (agência da ONU para a alimentação) na Venezuela, em seu gabinete em Caracas
    O brasileiro Marcelo Resende, representante da FAO na Venezuela, em seu gabinete em Caracas

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    Folha - De onde vêm os elogios da FAO à Venezuela?

    Marcelo Resende - Em 1990, havia 2,8 milhões de venezuelanos com fome, 14,1% da população. Desde 2010, este número está abaixo de 5%. A Venezuela, portanto, cumpriu com as metas do Milênio e com as da Cúpula Mundial contra a Fome [para reduzir a fome no mundo pela metade até 2015]. Apenas 29 países cumpriram ambas as metas.

    Dados da ONU mostram que a Venezuela é um dos países com menos desigualdade na América Latina. Isso se deve aos mecanismos de transferência da renda, como as missões sociais, e à rede de abastecimento criada pelo governo. São 22 mil pontos de abastecimento, na sua maioria com subsídios ao preço da cesta básica

    Os dados da FAO são fornecidos pelo governo?

    Sim. Não só aqui como no mundo todo. Mas são dados fáceis de verificar, porque, como a maior parte dos alimentos vem do exterior, basta revisar o volume de alimentos importados.

    Como falar em reconhecimento diante da escassez e da inflação que assolam os venezuelanos?

    Tem fila? Sim. Desabastecimento? Também. Inflação? Sim. São coisas péssimas para a segurança alimentar. Mas até o momento, isso não interferiu na disponibilidade calórica. Você vai no mercado e não encontra de tudo, mas uma hora os produtos aparecem, alternadamente. Um dia tem açúcar, no outro tem café. Não é verdade que ninguém tem acesso a nenhum alimento e está passando fome.

    Mas a crise econômica já afeta programas sociais e mercados estatais, e há dados que indicam alta da pobreza.

    Se você planejou todo o seu orçamento com barril a US$ 100, e esse barril baixa a US$ 29, é claro que algo acontece. Mas o governo segue com as políticas sociais e não fez choque de gestão. Aqui sempre houve ciclos. Há momentos de disponibilidade de alimentos e controle da inflação melhores que outros.

    Mas, de fato, se os níveis de escassez e inflação se mantiverem por um ou dois anos, é claro que isso acabará afetando os dados da FAO.

    Também há críticas ao padrão de alimentação, já que a Venezuela tem 38% de pessoas com sobrepeso ou obesidade. Como a FAO sabe se o venezuelano se alimenta corretamente?

    Abaixo de 1.800 calorias/dia, você está num estado de subalimentação. Na Venezuela, a média é de 2.385 calorias/dia. Mas isso não significa que a nutrição é boa. O reconhecimento não é pela qualidade do alimento, mas pela disponibilidade calórica por pessoa, que permite dizer que a fome não é um problema grave, como chegou a ser, quando havia quase 3 milhões de pessoas sem acesso às calorias mínimas para sobreviver.

    O senhor acredita na tese do governo de que há uma "guerra econômica" contra a Venezuela?

    Há elementos concretos que confirmam a existência disso. O contrabando de produtos agrícolas na fronteira [com a Colômbia] é uma realidade que afeta o abastecimento em alimentos. Também é verdadeiro o fenômeno pelo qual muita gente compra produtos subsidiados para revendê-los no mercado negro. São coisas muito prejudiciais.

    O que responde aos que o acusam de ser alinhado com o chavismo?

    A FAO estará sempre com os governantes que querem combater a fome. Nosso papel é brindar assistência técnica. Não me meto nas opções políticas do povo venezuelano.

    A FAO deixou de ter aquela concepção de antes, que consistia em vir para ensinar. Não vemos as coisas de cima para baixo. A FAO trabalha em função das diretrizes que o país estabeleceu. Não vou confrontar as suas opções políticas, muito pelo contrário.

    Aqui tem comunas, conselhos comunais, agricultura familiar. Essa opção do governo venezuelano é uma forma de participação social e democrática.

    Não existe segurança alimentar sem a participação e a apropriação e ao engajamento das pessoas para promovê-la. Governos são efêmeros, todos passarão. Esses instrumentos de participação social na Venezuela são importantes para a segurança alimentar.

    Quais os maiores problemas que o senhor identifica na Venezuela?

    Os problemas que o governo apontou como prioritários são realistas: insegurança; melhora dos serviços como luz, telefone e água, que está em crise de escassez; e o tema que me encanta, aumentar a produção agrícola.

    Mas a produção não aumenta, e o país continua dependente das importações. Revolver isso não deveria ser prioridade?

    É preciso produzir cada vez mais alimentos. A questão é como fazê-lo. Vários países resolveram abrir seu mercado para o capital internacional na produção agrícola.

    A Venezuela não fez esta opção. Ela toca a produção agrícola a partir de seus conselhos comunais, de suas comunas, da agricultura familiar e campesina. É um processo lento e gradual.

    Não seria mais eficiente envolver multinacionais para aumentar a produção?

    É uma opção de governo, que eu, como representante da FAO, respeito. Os números da redução da fome na Venezuela são fantásticos.

    Como é o financiamento da FAO na Venezuela?

    A FAO se mantem graças à contribuição dos Estados-membros. Esse fundo é usado para abastecer em recursos os países que mais precisam. Não é o caso da Venezuela. O governo venezuelano aporta todos os recursos necessários para os seus projetos.

    O senhor teme que o trabalho da FAO seja afetado caso a oposição chegue ao poder?

    Obviamente, a oposição tem outra concepção da economia, mas os projetos sociais são reconhecidos por toda a sociedade venezuelana. Qualquer governo terá um programa social forte.

    O senhor ainda tem relação com o MST?

    Contato, sempre tenho, mas não sou integrante do movimento. O MST e a Via Campesina têm vários projetos de apoio ao fortalecimento da agricultura familiar na América Latina.

    Mas estes projetos se relacionam mais com governos do que com a FAO. Nunca participei de uma reunião de relação institucional entre o governo venezuelano e os sem-terra.

    O senhor guarda mágoa por ter sido demitido do governo Lula, em 2003?

    Tenho o maior orgulho de ter servido meu país como presidente do Incra, mas hoje meu assunto é a FAO.

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