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    Sobreviventes de ataques em Londres vivem para negar vitória a terroristas

    DANICA KIRKA
    DA ASSOCIATED PRESS, EM LONDRES

    07/07/2015 07h00

    Perder uma irmã. Um filho. As pernas.

    Dez anos depois dos ataques suicidas que deixaram 52 mortos na rede de transportes de Londres, sobreviventes dos ataques e familiares dos mortos, ainda tristes e revoltados, sentem-se marcados pelo que aconteceu.

    Mas eles compartilham a determinação de seguir adiante com suas vidas, negando a vitória aos extremistas.

    Editoria de Arte/Folhapress

    Leia a seguir algumas recordações deles sobre a manhã em que a capital britânica foi abalada pelas explosões que atingiram três trens do metrô e arrancaram o capô de um ônibus de dois andares.

    *

    MINHA SEGUNDA VIDA

    Gill Hicks embarcou num trem do metrô na estação de King's Cross em 7 de julho de 2005 e respeitou as regras de etiqueta próprias do metrô. Os passageiros ficam em pé a milímetros apenas de outras pessoas, sem olhar realmente para elas.

    Gill não notou o homem-bomba, mas hoje sabe que estava a centímetros de distância quando ele detonou sua mochila na linha Piccadilly do metrô.

    Ela, que perdeu as duas pernas abaixo do joelho, comentou: "Há uma linha divisória nítida. Para mim, o dia 7 de julho de 2005 foi o fim da vida número um e de tudo que eu conhecia nela. E o início da sorte de ter recebido a dádiva de uma segunda vida."

    Sua vida número dois começou quando ela acordou no hospital. A pulseira que tinha sido colocada em seu braço a identificava como "uma desconhecida".

    Gill disse que isso a fez tomar consciência da inteligência da humanidade, porque ela foi resgatada em condições perigosas de destroços que estavam a muitos metros debaixo da superfície da terra.

    "As palavras naquela pulseira me disseram que pessoas arriscaram suas vidas para vir salvar uma desconhecida –para salvar tantos desconhecidos quanto possível. Para mim, isso é humanidade, porque essas pessoas não foram seletivas. Não fazia diferença eu ser rica ou pobre, eu ter religião ou não, qual era a cor de minha pele, se eu era homem ou mulher. O que importava era eu ser uma vida humana preciosa."

    Antes uma designer "workaholic", Gill, 47 anos, passou a ser oradora motivacional e a comandar a organização beneficente M.A.D. (Making a Difference) for Peace (Fazendo uma Diferença pela Paz).

    A organização procura colocar pessoas de todo o mundo em contato e incentivá-las a enxergar a paz como um verbo –um ato de responsabilidade individual, algo que é feito diariamente.

    Para Gill, as pessoas têm a responsabilidade de unir forças contra o extremismo global e as ideologias destrutivas. Mas isso não significa que ela não sinta raiva.

    Na realidade, está furiosa. E se pergunta como a perda de vidas inocentes e o fato de ela ter perdido suas pernas podem ter fomentado qualquer causa.

    Ela procura usar essa indignação como combustível de seus projetos, para mantê-la motivada e seguindo adiante. Considera que tem pouca escolha a não ser festejar o fato de estar aqui todos os dias.

    "Hoje, aqui à sua frente, não consigo sentir o chão", ela comentou, aludindo à sensação de estar em pé sobre pernas artificiais. "Tive que aprender a aceitar o fato de não conseguir sentir o chão. Mas ainda estou em pé. Essa é uma habilidade real, uma habilidade nova que tive que aprender nos últimos dez anos."

    "NÃO VOU DEIXAR QUE ME DERROTEM"

    Esther Hyman estava no trabalho –era secretária de um consultório médico em Oxford– quando ouviu a notícia de que "alguma coisa estava acontecendo" em Londres.

    Sua irmã Miriam, 32 anos, que era pesquisadora de imagens em uma editora, estava indo para uma reunião na capital. Tinha saído do metrô depois de uma das explosões, quando todos os passageiros foram retirados.

    Seu pai conseguiu falar com ela rapidamente. Miriam lhe disse que ia fazer uma pequena pausa e então decidir se seguia adiante, indo à reunião.

    Quando anoiteceu e seus familiares ainda não tinham tido mais notícias dela, eles se preocuparam. Logo depois começaram a procurá-la em hospitais e a distribuir cartazes de "procura-se pessoa desaparecida".

    Só depois de quatro dias foram descobrir a verdade: Miriam tinha embarcado num ônibus que foi alvo dos ataques. Nos anos seguintes, Esther, que hoje tem 46 anos, analisou suas opções. Ela precisava tomar uma decisão.

    "Vou deixar que o que aconteceu me derrote? Vou perder a minha vida, também? Vou permitir que eles me aterrorizem, como querem, até me submeter à força?", disse Esther. "Ou vou sobreviver, com minha sanidade intacta, e fazer tudo o que posso para encarar o que aconteceu de frente?"

    Ceder não era uma opção. "Mim (Miriam) não teria aprovado", ela explicou.

    A família criou uma fundação e financiou o Centro Miriam Hyman de Oftalmologia Infantil, em Odisha, Índia. Pareceu apropriado, porque Miriam tinha começado a usar óculos na adolescência e ficara espantada ao enxergar tudo que antes lhe passava despercebido.

    Ela era uma pessoa muito visual e ficava fascinada por enxergar melhor as coisas da natureza, como os detalhes das folhas.

    Em conjunto com o Instituto de Educação do University College London, a fundação criou um programa educacional que usa a história de Miriam e a reação de sua família à morte dela para prevenir as chances de jovens se deixarem atrair por extremismos de quaisquer tipos.

    A fundação espera que o programa, lançado esta semana, seja usado por educadores em todo o mundo para oferecer aos jovens uma narrativa alternativa ao extremismo.

    Trata-se de fazer escolhas -e fazer as escolhas certas. "Tiraram a vida de Miriam", disse Ester. "Mas não podem tirar o tempo que tivemos de convivência com ela e o que optamos por fazer como reação a tê-la perdido daquela maneira."

    A MEMÓRIA NUNCA DESAPARECE

    Stavros Marangos se lembra do silêncio. Um dos primeiros membros do Corpo de Bombeiros de Londres a comparecer ao local da explosão de um ônibus na praça Tavistock, ele notou imediatamente que o trânsito, a agitação e o barulho usuais tinham desaparecido, substituídos pelo uivo de sirenes à distância.

    "Era um silêncio estranho", ele comentou.

    Seus superiores avisaram que podia haver bombas secundárias e disseram que nenhum bombeiro era obrigado a descer do caminhão. Mas todos desceram.

    "Foi como uma cena de um filme de guerra. Havia partes de corpos espalhados por toda parte, impossíveis de identificar."

    Uma pessoa no ônibus ainda estava viva, mas não havia mais macas. As equipes de resgate usaram o tampo de uma escrivaninha para levar o sobrevivente até o pátio da vizinha Associação Médica Britânica, onde médicos tinham se reunido para dar atendimento aos feridos.

    Dez anos depois, Marangos não consegue tirar a cena de sua cabeça.

    "No dia a dia, quando estou ocupado, fazendo outras coisas, a cena fica em segundo plano. Mas de vez em quando ela se destaca outra vez. Vou lhe repetir uma frase que ouvi em um filme sobre o Corpo de Bombeiros de Detroit. Um bombeiro veterano, com 32 anos de serviço, estava se aposentando e cunhou a frase: 'Eu queria que minha cabeça conseguisse esquecer o que meus olhos viram'."

    UM PEDAÇO DE SUA ALMA FOI ARRANCADO

    Quando ouviu a primeira notícia sobre problemas no metrô, Grahame Russell não prestou muita atenção, porque os primeiros relatos sugeriam que teria sido um corte de eletricidade.

    Mas na hora do almoço ele recebeu um telefonema do escritório de seu filho, Philip. O escritório tinha recebido uma mensagem de texto de Philip, que trabalhava com finanças, às 9h30, dizendo que estava prestes a subir num ônibus.

    E ele não tinha dado mais notícias desde então. "Obviamente, ficamos doentes de preocupação", disse Russell.

    Pouco depois um funcionário da polícia encarregado do contato com famílias chegou à sua porta. Philip foi classificado como "desaparecido" durante dias. Sua família identificou seu corpo no dia em que ele teria completado 29 anos.

    Dez anos mais tarde, Russell, que tem 72 anos hoje, diz que já desistiu de tentar encontrar algum sentido no que aconteceu.

    "É muito difícil", ele disse. "Quando um pedaço de sua alma é arrancado, a vida fica muito difícil. Tenho dificuldade em refletir e olhar para trás. Se eu fizesse isso toda hora, desabaria."

    Em vez disso, Russell mergulhou fundo em um projeto para criar um memorial mais personalizado na praça Tavistock, homenageando não apenas as vítimas, mas também os sobreviventes e os funcionários dos serviços de resgate, muitos dos quais arriscaram suas vidas em situações perigosas para conseguir chegar aos feridos.

    "Eles não são homenageados em nenhum lugar, e acho que precisamos ter alguma inscrição para agradecê-los", disse Russell. Ele espera criar um espaço de reflexão para todas as pessoas afetadas pela tragédia.

    "Mas também para que nos lembremos delas. Se esquecermos o que aconteceu, faremos tudo de novo."

    Tradução de CLARA ALLAIN

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