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    Iêmen corre risco de fragmentação, diz ministra em entrevista à Folha

    DIOGO BERCITO
    EM MADRI (ESPANHA)

    31/07/2015 17h00

    Após meses de bombardeios sauditas e confrontos com a milícia xiita houthi, o Iêmen tem sofrido uma rápida deterioração política. Essa grave crise pode levar, segundo a ministra da Informação do país, Nadia al-Sakkaf, a uma nova fragmentação territorial.

    "Depois de tanto sangue e raiva, não sei se poderemos continuar como um país só", disse Sakkaf em entrevista por telefone à Folha. O país já esteve dividido entre norte e sul, até 1990.

    A ministra prevê que o retraçar das fronteiras deve envolver não apenas o futuro do Iêmen, mas de todo o Oriente Médio. "A região está passando por uma fase bastante traumática. Reinos vão cair. Repúblicas vão ser divididas", afirmou.

    James Duncan Davidson-14.jul.2011/TED
    Nadia al-Sakkaf, ministra da Informação do Iêmen. "Não sei se poderemos continuar como um país só."
    Nadia al-Sakkaf, ministra da Informação do Iêmen. "Não sei se poderemos continuar como um país só."

    O Iêmen, país mais pobre da região, é afetado há quatro meses por violentos conflitos. Cerca de 2.000 civis morreram desde março.

    Segundo a organização humanitária Oxfam, 13 milhões lutam para poder se alimentar. A ONU estima que 10 milhões têm pouco ou nenhum acesso a água ali.

    Apesar do cenário macabro e da importância desses embates no contexto regional, a atenção externa e a ajuda humanitária ainda são insuficientes, diz Sakkaf.

    "Tínhamos pouca infraestrutura, agora não temos nenhuma. Não há interesse em ajudar o Iêmen, o que me deixa triste e com raiva. Dizem que já estão pagando pela Síria e pelo ebola ."

    Segundo a ministra, a situação do Iêmen deve mudar nas próximas semanas. "Está acontecendo rápido. Até o fim de agosto, haverá uma mudança política significativa", prevê.

    Sakkaf, anteriormente editora-chefe do jornal local "Yemen Times", é hoje uma das principais figuras do governo iemenita exilado na Arábia Saudita. Com os avanços da coalizão saudita e a retomada da cidade de Áden, a ministra se mostra otimista com a perspectiva de uma solução ao embate.

    *

    Folha - Qual é a situação hoje no Iêmen?

    Nadia al-Sakkaf - De um ponto de vista militar, a cidade de Áden está quase totalmente liberada. Espero que em dez dias haja outras duas áreas próximas ao sul de onde os houthis terão sido expulsos. A situação está melhorando, no sul, mas o número de pessoas que precisa de ajuda humanitária está aumentando.

    Por que não há paz?

    Para a crise ser resolvida, ambos os lados têm que perceber que não podem vencer. Até que os houthi percebam que não podem tomar um país, um acordo de paz não fará sentido. Mas isso vai acontecer logo. Espero ouvir boas novas.

    Quão cedo?

    Acho que as coisas vão começar a mudar em uma semana ou em dez dias. Está acontecendo rápido. Até o fim de agosto, haverá uma mudança política significativa.

    Há alguns anos, analistas pensavam que o Iêmen pudesse ser um exemplo para a Primavera Árabe. O que deu errado?

    O primeiro erro que cometemos foi permitir que o ex-ditador Ali Abdullah Saleh continuasse no país e no poder de seu partido. Ele manteve também todo o dinheiro dele.

    Outro erro foi que o governo que existiu entre 2012 e 2014 era inútil. Era muito fraco. Permitiu que a economia se deteriorasse. A percepção do Estado enfraqueceu-se diariamente.

    Simultaneamente, em um contexto mais amplo, os atores internacionais e regionais têm seus interesses. Principalmente Arábia Saudita e Irã.

    O acordo nuclear com o Irã pode mudar esse cenário?

    Não acho que o acordo nuclear irá satisfazer o Irã. O governo não vai se comportar. Será o oposto. O acordo alimentará seu ego, e o Irã se tornará mais ambicioso. Vamos ter ainda mais conflitos.

    Essa crise tem relação com outros embates na região, por exemplo, os ataques turcos contra o Estado Islâmico ?

    Há muitos incidentes para que digamos que é uma coincidência. A região está passando por uma fase bastante traumática. Esse conflito em andamento na região está mudando o Oriente Médio. Reinos vão cair. Repúblicas vão ser divididas.

    No caso do Iêmen, haverá divisão entre norte e sul?

    É provável que algo assim aconteça. Depois de tanto sangue e raiva, não sei se poderemos continuar como um país só.

    Seu governo permanecerá no norte?

    Não sei. É muito cedo para especular.

    O que a sra. espera da comunidade internacional?

    Em primeiro lugar, o reconhecimento do governo eleito. Quando tivermos um acordo de paz, o que tem que acontecer em algum momento, esperamos que nos ajudem a recuperar o país a partir do zero. Está na verdade abaixo de zero, agora. Tínhamos pouca infraestrutura, agora não temos nenhuma. Não há muito interesse em ajudar o Iêmen, o que me deixa triste e com raiva.

    Por que não há interesse?

    Dizem que já estão pagando pela Síria, pelo ebola, pelo Nepal. Dizem que temos que esperar nossa vez, mas são milhões de pessoas que precisam de auxílio imediato.

    Como você avalia o papel saudita, que promete ajuda humanitária e, ao mesmo tempo, bombardeia o país?

    O problema dos ataques aéreos é que já passou tanto tempo que nos esquecemos de porque começaram. Quando analistas olham para a crise iemenita, começam por março de 2015, o início dos ataques sauditas. Mas a crise começou em setembro de 2014, quando os houthis se moveram rumo à capital, Sanaa, e tomaram as instituições estatais. Tudo isso foi esquecido.

    Quanto aos sauditas, não acho que eles esperavam que a guerra durasse tanto, e não acho que eles entendiam as consequências humanitárias.

    Como o governo iemenita está operando, a partir do exílio na Arábia Saudita?

    Não operamos exatamente como um governo. Não temos ministros. O que temos é um time de emergência. Cada um de nós tem tarefas. Temos membros do governo em Áden, tentando restabelecer o Estado no terreno.

    Mas esse governo não conseguirá ter credibilidade aos olhos do povo até que forneça ajuda humanitária. As pessoas estão famintas e culpam o governo, os sauditas, os houthi —não distinguem entre quem está certo e quem está errado.

    Qual é o seu contato, hoje, com a população iemenita?

    As mídias sociais têm sido incríveis. É nossa linha direta com as pessoas. Telefonemas são possíveis, mas são caros, e nem sempre as pessoas se sentem seguras para falar. Infelizmente, não há imprensa operando no país, exceto por aquela controladas pelos houthis.

    Como você avalia o papel dos EUA?

    Eles foram tomados de surpresa pela extensão dos ataques sauditas. Agora estão preocupados com a situação humanitária e com a duração do conflito. O caos permite que haja mais terrorismo. Com os houthis vêm os radicais, como o Estado Islâmico. Há milícias armadas em todos os lugares.

    Os americanos querem entender quem são os atores reais no terreno. Quem pode ser um parceiro na luta contra o terrorismo, mesmo que seja um líder houthi. Os EUA querem alguém que tenha influência. Eles apoiam o governo iemenita, mas o governo iemenita está exilado, e eles precisam de pessoas que possam fazer a diferença no terreno.

    O Estado Islâmico pode ter uma base no Iêmen?

    A população iemenita é muito diversa. Não acho que eles podem se estabelecer ali. Não é possível um movimento controlar todo o país. Mas o Estado Islâmico terá bolsões, como a Al Qaeda.

    Os ataques americanos com drones (aviões não tripulados), na última década, radicalizaram a população?

    A radicalização tem a ver com como o Iêmen desceu nessa espiral de pobreza e analfabetismo. Os EUA estiveram preocupados apenas com terrorismo e não com pressionar o mundo para que ajudasse no desenvolvimento do Iêmen. Se estivéssemos no GCC (Conselho de Cooperação do Golfo), o Iêmen seria diferente.

    Talvez agora possamos ter um melhor lugar, se os vizinhos ricos nos protegerem, como a Europa está salvando a Grécia.

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