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    Com cerco à oposição, presidente do Egito instaura 'república do medo'

    ISABEL FLECK
    ENVIADA ESPECIAL AO CAIRO

    17/08/2015 02h00

    Os egípcios voltaram a se reunir na praça Tahrir, no Cairo.

    Com bandeiras e pôsteres do presidente Abdel Fattah al-Sisi, celebraram, no último dia 6, a nova conquista do país –a expansão do canal de Suez–, numa demonstração de patriotismo também vista ao longo da rodovia que liga a capital a Ismailia, onde foi realizada a cerimônia de inauguração.

    A euforia, aparentemente espontânea, de parte da população com a grande obra e o empenho de Sisi para recuperar a economia, contrasta com o clima de apreensão gerado pelo atual governo, que já é considerado por ativistas de direitos humanos o mais repressor da história recente do Egito –superando, inclusive, o regime de Hosni Mubarak (1981-2011).

    Os últimos dados oficiais, divulgados no segundo semestre de 2014, contabilizavam 22 mil prisões de opositores desde o golpe, liderado por Sisi, que derrubou Mohammed Mursi, em julho de 2013.

    Ativistas, no entanto, estimam que mais de 41 mil tenham sido detidos ou respondem a acusações políticas.

    "O Egito está vivendo uma república do medo. Em termos de violações dos direitos humanos, é muito difícil comparar a era Sisi com qualquer outra da nossa história moderna", afirma Mohamed Zaree, um dos diretores do Instituto para Estudos de Direitos Humanos do Cairo.

    Xinhua
    Menino segura bandeira do Egito ao lado do presidentee Sisi na inauguração do novo canal de Suez
    Menino segura bandeira do Egito ao lado do presidente Sisi na inauguração do novo canal de Suez

    A perseguição se centra especialmente sobre supostos membros da Irmandade Muçulmana, de Mursi, declarada organização terrorista por Sisi em dezembro de 2013, mas também tem como alvo liberais, jornalistas e críticos ao governo.

    Entre 2013 e 2014, foram mortos 1.250 partidários da Irmandade e 550 civis, segundo levantamento do Conselho Nacional para Direitos Humanos.

    "Desde a queda de Mursi, a situação dos direitos humanos vem só se deteriorando", diz o egípcio Mohamed Elmessiry, pesquisador da Anistia Internacional. "O governo tem estabelecido leis que restringem a liberdade de expressão e de associação."

    Elmessery se refere à lei sobre protestos –que exige que manifestações sejam autorizadas pelo governo– e à lei antiterrorismo –que dá poderes para banir organizações e sobre a qual se discute uma emenda para punir jornalistas que divulguem informações sobre ações terroristas diferentes das oficiais.

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    REPRESSÃO

    Ainda está prestes a entrar em vigor a lei de crimes virtuais, que prevê punição a internautas que "perturbem a ordem pública".

    "O governo está destruindo a oposição e faz isso com a justificativa de que defende a segurança nacional", afirma Elmessiry.

    Zaree vê com pessimismo os próximos anos de governo Sisi, que foi eleito em 2014 para mandato até 2018. "Ainda consigo falar com a imprensa internacional, mas alguns amigos já pararam de fazer isso", diz.

    Sobre os jornalistas, a perseguição também tem sido cada vez mais dura. Pelo menos 22 estão detidos, segundo o Comitê para a Proteção de Jornalistas (CPJ) –entre eles, dois repórteres da Al Jazeera acusados de "colaborar com uma organização terrorista".

    "O principal problema é que não temos acesso à informação. Se virmos alguma coisa e publicarmos, estamos em perigo, porque não será a versão oficial", explica o jornalista Deena Gamil. "O futuro do jornalismo no Egito é muito sombrio, assim como o da democracia", lamenta.

    Analistas apontam outros "sinais" de que o governo eleito de Sisi se aproxima de uma ditadura, como o crescente culto à imagem do presidente –promovido pelo Estado e associado ao discurso nacionalista, com obras como a do canal de Suez e a luta contra o Estado Islâmico.

    "O Egito tem um ditador eficiente", diz Mohamed Elmenshawy, do jornal egípcio "Al-Shorouk". "Sisi está usando todos os meios de uma ditadura para acabar com as chances dos oponentes."

    POPULARIDADE

    Apesar da crescente repressão e do autoritarismo de Abdel Fattah al-Sisi, o apoio a seu governo é visível entre grande parcela da população, que diz confiar no presidente e nos militares.

    A única pesquisa disponível –feita em junho, com 8.500 pessoas–, mostra que 90% da população apoia o governo. Em seus primeiros cem dias no poder, em 2012, Mohammed Mursi tinha apoio de 78% dos egípcios.

    "O país está dividido", diz Mohamed Elmenshawy, colunista do jornal "Al Shorouk". "Os egípcios estão cansados após quatro anos e meio de caos. Eles querem estabilidade e segurança. Alguns não ligam para política, outros temem repressão caso participem de protestos ou movimentos de oposição."

    Mohamed Elmessiry, pesquisador da Anistia Internacional, concorda com a visão de que a confiança no atual presidente é fruto do desgaste que o país viveu desde a queda de Mubarak, em 2011.

    "Ninguém pode negar que a segurança melhorou com Sisi, e hoje a maioria dos egípcios prefere segurança a direitos humanos", diz.

    A economia também dá sinais de recuperação. A estimativa de crescimento para 2015 é de 4%, segundo o FMI (Fundo Monetário Internacional), o dobro do registrado nos últimos quatro anos.

    O anúncio de projetos ambiciosos, como o do canal de Suez, que aumentarão a arrecadação e criarão empregos, também motivam os egípcios.

    "O regime usa o discurso nacionalista para obter apoio, e o contexto regional é tão ruim que todas as medidas excepcionais são consideradas justificáveis", diz Amr Adly, do programa de Oriente Médio do Centro Carnegie.

    O apoio tem como pano de fundo o histórico de defesa da soberania, diz Andrew McGregor, autor de "A Military History of Modern Egypt".

    O Exército foi responsável pelo fim do domínio britânico (1952) e enfrentou Israel no canal do Suez na Guerra do Yom Kippur, em 1973.

    Além disso, os militares controlam boa parte da economia e dos meios de comunicação. "Isso permite posarem como salvadores da nação, quando, de fato, podem intimidar políticos e manipular a opinião pública."

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    MÃO DE FERRO

    Prisões políticas no governo Sisi

    22 mil
    pessoas estão detidas e enfrentam acusações políticas, segundo o governo

    41 mil
    foram presas ou respondem a acusações políticas, segundo grupos de direitos humanos

    22
    jornalistas estão presos -a maioria sob a acusação de envolvimento com a Irmandade Muçulmana

    LEIS DRACONIANAS DA ERA SISI

    Lei antiterrorismo
    Governo pode banir organizações que "ameacem a unidade nacional" ou "perturbem a ordem pública". Emenda prevê prisão de, no mínimo, dois anos para quem publicar dados sobre operações de contraterrorismo que contradigam informações oficiais

    Lei sobre protestos
    Exige que manifestações sejam avisadas ao Ministério do Interior com três dias de antecedência; reuniões com mais de dez pessoas já são consideradas 'encontro público'

    Lei de crimes virtuais
    Permite que internautas sejam detidos e recebam penas longas pelos crimes vagos de "ameaçar a unidade nacional" ou "perturbar a ordem pública"

    A repórter ISABEL FLECK viajou a convite da Autoridade do Canal de Suez

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