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    crítica

    Testemunha narra horror do Holocausto em livro histórico

    ELEONORA DE LUCENA
    DE SÃO PAULO

    24/08/2015 03h00

    "O campo estava a cerca de uma centena de metros... Senti um cheiro horrível de imundície e corpos em decomposição... Eles estavam ali, famintos, fedendo e gesticulando, terrível rebanho de seres humanos. Os alemães e os guardas abriam caminho no meio deles a coronhadas... Pareciam guardadores de gado. Passamos por um velho. Estava sentado no chão completamente nu... A seu lado, jazia uma criança esfarrapada, sacudida por tremores... A massa de judeus vibrava, deslocando-se de um lado para outro, sem rumo, espasmodicamente. Eles agitavam a mãos, gritavam, discutiam, cuspiam uns nos outros, praguejavam. A fome, a sede o terror e o esgotamento tinham enlouquecido as pessoas".

    Assim Jan Karski descreveu o que viu em 1942 no campo de concentração de Belzec, a 160 km de Varsóvia, na Polônia invadida por Hitler. O testemunho foi levado a lideranças dos países aliados; em 1943, fez um relato pessoal sobre o extermínio judeu a Franklin Roosevelt na Casa Branca. Foi um dos primeiros depoimentos sobre o holocausto na Segunda Guerra.

    Diplomata e membro da resistência polonesa, Karski escreveu, nos EUA, um livro sobre sua experiência. "Estado Secreto" foi lançado em 1944 com uma tiragem de 400 mil exemplares e vendas alavancadas pelo Círculo do Livro. Só agora a obra é publicada no Brasil, enriquecida por notas esclarecedoras.

    Boa parte do texto trata da trajetória de Karski (1914-2000) nos subterrâneos da luta contra os alemães. Católico de classe média e jovem frequentador de festas, ele se viu jogado no front quando a guerra estourou, em 1939. Foi capturado, torturado, tentou o suicídio e escapou.

    Viajou pela Europa fazendo articulações contra o Reich: organizou jornais clandestinos, arrecadou fundos e investigou os horrores praticados pelo Exército alemão. Assassinatos, fome, corrupção, pobreza –violências de todo o tipo são expostas.

    GUERRA FRIA

    Seu trabalho, no entanto, foi enredado pelas circunstâncias de disputa entre os aliados e os primórdios da Guerra Fria. Ele recebeu críticas por ignorar o papel vital dos comunistas na resistência e derrocada de Hitler.

    Em 1945, a revista "Soviet Russia Today", que circulava nos EUA, chamou Karski de aristocrata e ignorante em relação ao papel dos trabalhadores poloneses na resistência. Disse que ele enxovalhava os esforços dos aliados, acusando-o de provocador por chamar a Conferência de Ialta de "um novo acordo de Munique" [quando, em 1938, Reino Unido e França cederam a exigências de Hitler].

    Para Karski, a crítica teve efeito negativo na divulgação de seu texto, conta a historiadora francesa Céline Gervais-Francelle na informativa introdução da edição brasileira. A obra perdeu projeção com a euforia do fim da guerra. Projetos de tradução foram abandonados.

    Karski fez um relatório sobre o livro, apontando imposições feitas pelos seus editores nos EUA, que não queriam polêmica com os soviéticos.

    Segundo ele, todo um capítulo sobre a URSS e a resistência polonesa foi rejeitado pelo editor americano. Num posfácio negociado com os poderes da época, o autor cita os comunistas na luta contra Hitler, mas reforça o caráter pessoal do seu trabalho.

    "Utilizei minha memória com fidelidade e honestidade. Mas as circunstâncias da época impunham certos limites sobre o que era possível escrever", desabafou ele, em 1999, quando a obra foi lançada na Polônia.

    Em que pese esse contexto, "Estado Secreto" é ágil, tem colorido, frescor e ritmo. Cheio de diálogos, foi redigido como se fosse servir de base a roteiro de filme. Karski relata dramas familiares, mortes brutais, embates por comida, subterfúgios para jornais rebeldes circularem.

    Seu forte está no testemunho das incursões clandestinas ao campo de concentração e ao gueto de Varsóvia. Sobre este, Karski anotou: "Por todo lado era a fome, o sofrimento, o cheiro nauseabundo dos cadáveres em decomposição, os lamentos dilacerantes das crianças em agonia, os gritos de desespero de um povo que se debatia numa luta monstruosamente desigual".

    Sua atuação na Segunda Guerra foi recuperada no fim do século 20. Nos anos 90, foi condecorado por Lech Walesa e teve seu nome indicado por Israel para Nobel da Paz.

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    ESTADO SECRETO
    AUTOR Jan Karski
    EDITORA Objetiva (440 págs.)
    QUANTO R$ 59,90
    AVALIAÇÃO bom

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    1939
    Nazistas invadem a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial. Jan Karski, que trabalhava na diplomacia, é capturado pelos soviéticos e levado a campo de detenção, de onde consegue fugir para se juntar ao movimento polonês de resistência

    1940
    Karski é preso e torturado pela Gestapo. No entanto, consegue escapar e volta a trabalhar para a resistência. Nos próximos anos, infiltra-se em campos de concentração e no gueto de Varsóvia e se reúne com diversas autoridades estrangeiras para denunciar o extermínio de judeus

    Estado Secreto
    Jan Karski
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    1943
    Jarski encontra-se com o então presidente dos Estados Unidos, Franklin Roosevelt, na Casa Branca

    1944
    Lançamento nos EUA do livro "Estado Secreto", de Karski

    1945
    Fim da 2ª GM; revista "Soviet Russia Today" acusa Karski de ignorar papel dos trabalhadores poloneses na resistência. Após a crítica, livro perde projeção

    Fonte: United States Holocaust Memorial Museum

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