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    Depoimento

    Após quase perdê-lo no Katrina, não deixei mais meu cachorro

    ALEX CASTRO
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    27/08/2015 17h00

    Um dia, em 2003, encontrei um cachorro na favela de Rio das Pedras, no Rio de Janeiro, correndo por entre as rodas dos carros. Não consegui achar seus donos e fui ficando com ele. Oliver.

    Na virada do ano, assustado com os fogos de artifício, fugiu de casa e se perdeu na mesma favela. Comecei 2004 debaixo de chuva, distribuindo mais de 500 panfletos por ruas estreitas e enlameadas.

    Um padeiro olhou a foto e disse que Oliver tinha passado a tarde toda na sua padaria, fazendo cambalhotas em troca de comida: "Só botei pra fora quando tive que lavar o chão."

    Pelo menos, ele era um sedutor e sabia se virar. Meu único medo era ser atropelado. Depois de cinco dias, perdi as esperanças. Então, o safado reapareceu.

    Pouco depois, minha mulher saiu de casa e recebi um convite para estudar em Nova Orleans, tudo na mesma semana. Fui. Disseram que eu era louco de levar meu cachorro, mas eu respondia: "Esse aí é um sobrevivente!"

    Mal nos mudamos e veio a notícia: a cidade poderia ser atingida por um furacão. Naquele sábado, 27 de agosto de 2005, as pessoas ainda estavam tranquilas.

    As remoções de parte da população das cidades devido a furacões eram parte da vida no golfo do México: todo mundo ficava no engarrafamento, nada acontecia, os moradores ganhavam um feriadão.

    Eu, recém-chegado, sem rede de amigos, sem estrutura de apoio, não sabia o que fazer. Minha universidade estava oferecendo ônibus para levar os alunos para abrigos, garantindo que voltaríamos em três dias.

    Confiando na calma dos locais, acabei seguindo essa orientação e deixei Oliver preso no meu quarto, com bastante jornal, água, comida. Dormi no ginásio poliesportivo de uma universidade em Jackson, no Estado do Mississippi.

    Katrina, 10 anos

    Quando amanheceu domingo, já era certo que o Katrina atingiria Nova Orleans: os jornais previam centenas de milhares de mortos, a destruição completa da cidade e o fim do meu cachorro.

    Ficar no ginásio poderia até ser legal por dois dias, mas agora perigávamos de ter que ficar lá por semanas. Voltar para Nova Orleans não era possível, melhor ir para outro lugar. Abandonei o abrigo e corri para o aeroporto de Jackson.

    Em meio ao caos reinante, fui de guichê em guichê perguntando: "Tem passagem no próximo voo para qualquer lugar?"

    Tinha, para Detroit. A véspera do Katrina foi a pior noite da minha vida. Todos os telões do aeroporto, todas as manchetes de jornais previam o apocalipse e repetiam a mesma mensagem: "Você abandonou o Oliver", "Ele vai morrer", "A culpa é sua!"

    Quando deu uma da manhã, no meio de mais um Kaputt Nova Orleans!, o aeroporto de Detroit misericordiosamente desligou todas as telas e eu pude dormir.

    No dia seguinte, cheguei à casa de uma amiga, em Nova Iorque, e a tragédia já estava sendo transmitida ao vivo, o fim de uma grande cidade, diversão para toda a família.

    Não consegui assistir. Passei os dias seguintes na internet, pedindo ajuda, elaborando, descartando, refazendo planos mirabolantes.

    Um deles: voar para alguma cidade próxima, alugar um 4X4, entrar em Nova Orleans, salvar o Oliver, sair. Mas os aeroportos estavam parados, os carros inundados, a cidade fechada.

    Outro, voar até Miami e convencer uma amiga, que coordenava a sucursal de uma TV brasileira, a mandar uma equipe comigo resgatar o Oliver: "Juro que choro ao vivo na edição da tarde e da noite!". Mas não havia verba.

    RESGATE

    Enquanto isso, uma amiga contou minha história para a filha colombiana de uma conhecida de sua sogra, que mencionou conhecer um fotógrafo sino-americano, Mark Gong, que estava indo a Nova Orleans para tirar fotos da tragédia e talvez pudesse ajudar.

    A conexão era tão tênue que não me permiti esperanças, mas, no dia 5 de setembro, recebi o telefonema: Oliver já tinha sido resgatado pelo fotógrafo e por seu amigo indiano (que aparece na foto) e estava com eles em Washington.

    Minha casa não sofrera nada. Oliver, malandro favelado, soube racionar seus mantimentos e, mesmo depois de dez dias, ainda tinha bastante água e comida.

    Uma companhia aérea estava reunindo gratuitamente donos e animais separados pelo Katrina e, dois dias depois, levaram o Oliver de Washington para Berkeley, na Califórnia, onde eu tinha sido aceito na universidade local.

    Reencontrá-lo foi um novo milagre. Nova Orleans permaneceu fechada por cinco semanas e quase todos os animais que tinham sido deixados em casa acabaram morrendo de fome, de sede, de calor.

    Oliver e eu não nos separamos mais. Depois de passar por San Francisco, Miami, Nova Iorque, São Paulo, Paraty, assentamos de volta no Rio, onde ele fazia até stand-up paddle e foi estrela do episódio "Heróis" do programa Pet.doc, do GNT. Morreu em dezembro de 2014, de velhice. Faz falta todo dia.

    ALEX CASTRO é escritor e organizou a edição brasileira da "Autobiografia do Poeta-Escravo Juan Francisco Manzano", a ser lançada na Livraria da Vila no próximo dia 1º de setembro.

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