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    análise

    Pretensa universalidade de valores ocidentais entra em xeque

    STEVEN ERLANGER
    DO "THE NEW YORK TIMES"
    EM LONDRES

    19/09/2015 02h00

    Selman Design/The New York Times

    O Ocidente está subitamente mergulhado em dúvidas a seu próprio respeito.

    Séculos de superioridade e influência global pareciam ter chegado a um novo auge com o colapso da União Soviética, e os países, os valores e a civilização do Ocidente julgavam ter vencido a sombria e árdua batalha contra o comunismo.

    Essa vitória pareceu especialmente doce depois da guinada da China na direção do capitalismo, que muitos viram como um presságio de uma lenta evolução das demandas da classe média -como direitos individuais e transparência judicial- rumo a uma forma de democracia.

    Mas será que a adoção dos valores ocidentais é mesmo inevitável? Será que os valores ocidentais, basicamente judaico-cristãos, são de fato universais?

    A ascensão do capitalismo autoritário foi um duro golpe para a premissa, popularizadas por Francis Fukuyama, de que a democracia liberal havia provado ser o sistema político mais confiável e duradouro.

    Com o desmoronamento do comunismo, "o que podemos estar testemunhando", escreveu Fukuyama, esperançoso, em 1989, "é o ponto final da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como forma máxima de governo humano".

    Mas, levando-se em conta a intensificação do autoritarismo chinês, os rumos revanchistas e ditatoriais tomados pela Rússia e a ascensão do islamismo radical, a vitória do liberalismo ocidental pode parecer inútil, já que seus valores estão sob ameaça até mesmo em suas próprias sociedades.

    Os refugiados sírios e outros migrantes que chegaram em grande número à Europa nas últimas semanas estão sendo bem acolhidos em grande parte do continente, especialmente na Alemanha e na Áustria. No entanto, esse movimento também motivou novas preocupações a respeito da crescente influência do islamismo -e dos radicais islâmicos- na Europa.

    Muitas potências emergentes da globalização, como o Brasil, estão interessadas em democracia e Estado de direito, mas não na pregação do Ocidente, que consideram hipócrita.

    Mesmo a Rússia argumenta ter um caráter excepcional ("a terceira Roma") e oferecer uma representação mais perfeita da civilização ocidental, alegando que o Ocidente age de forma interesseira, decante e hipócrita ao defender valores universais, mas ignorando-os quando lhe convém.

    A disputa acerca de valores não se limita à democracia. Ao rejeitar os valores liberais ocidentais de opção e igualdade sexual, a conservadora Rússia encontra uma causa comum com muitas sociedades da África e com os ensinamentos religiosos do islamismo, do Vaticano, dos protestantes fundamentalistas e dos judeus ortodoxos.

    Interpretações extremistas da religião podem ser uma resposta reconfortante e inspiradora para as confusões da vida moderna, mas em breve elas poderão virar também um inimigo da liberdade religiosa e da tolerância, observa Robert Cooper, diplomata britânico que ajudou a construir uma política externa europeia em Bruxelas e definiu o problema dos Estados falidos e pós-modernos em seu livro "The Breaking of Nations" [O rompimento das nações].

    Um rápido exame da antropologia nos mostra que "o que nós consideramos valores universais não são tão universais", segundo ele.

    Tendemos, por exemplo, a "falar em democracia como um valor universal", disse Cooper, "mas quando foi exatamente que as mulheres na Itália obtiveram o direito ao voto? E os negros no sul dos Estados Unidos? Portanto, temos padrões muito rasos para isso".

    Na Itália, as mulheres votam desde 1965, e é possível argumentar que o voto só se tornou universal nos EUA em 1965.

    Tendo a possibilidade de escolher, "quase todas as pessoas do mundo gostariam de viver nas nossas sociedades, porque se pode viver melhor e não é preciso mentir o tempo todo", disse ele. "Então talvez seja errado falar de valores universais. Mas a sociedade que [esses valores] propiciam é universalmente atraente."

    A China é frequentemente citada como um contraexemplo do caráter universal da democracia e dos direitos humanos. No entanto, o que distingue a China é o seu desinteresse em difundir o seu modelo para o resto do mundo.

    O universalismo ocidental era real, ainda que excludente. A União Soviética tentou espalhar a revolução e o comunismo, a França teve a sua "Declaração dos Direitos do Homem", e os Estados Unidos se valeram da sua autoimagem de "cidade edificada sobre um monte". Já a China se envolve com o mundo guiada apenas por seus próprios interesses, desligados de objetivos morais.

    A visão chinesa não é universalista, e sim mercantilista, e os líderes de Pequim estão menos interessados em refazer o mundo do que em se proteger das vulnerabilidades da globalização. A China reage às aspirações ocidentais e aos esforços de remodelar o mundo à sua imagem.

    William Burns, diretor do Fundo Carnegie e ex-subsecretário de Estado dos EUA, diz que "nossa tendência à pregação e ao sermão às vezes atrapalha, mas os sistemas democráticos mais abertos têm um núcleo que exerce uma atração duradoura". Esse núcleo, segundo ele, é "a noção ampla de direitos humanos, de que as pessoas têm o direito de participarem das decisões políticas e econômicas que lhes interessem, e o Estado de Direito para institucionalizar tais direitos".

    "O respeito pela lei e o pluralismo cria sociedades mais flexíveis, porque, do contrário, é difícil manter coesas sociedades multiétnicas e multirreligiosas", afirmou Burns.

    É isso que o mundo árabe enfrentará durante muito tempo, à medida que Estados ligados aos velhos sistemas sucumbirem, acrescentou.

    As democracias, sob qualquer forma, parecem mais capazes de lidar com pressões variadas do que governos autoritários. A história não se move lateralmente, e sim em muitas direções diferentes ao mesmo tempo, segundo Burns. "A estabilidade não é um fenômeno estático."

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