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    Alemanha abriga refugiados em área de ex-campo de concentração nazista

    SOPHIE HARDACH
    DO "GUARDIAN"

    21/09/2015 12h42 - Atualizado às 13h17

    Depois de cinco anos em um abrigo para refugiados superlotado no sul da Alemanha, Ashkan por fim encontrou um quarto para alugar.

    Acaba de ser reformado e é barato, embora seja pequeno e um pouco distante da cidade. Ashkan, 22, cozinheiro que fugiu do Afeganistão depois que o Taleban matou seu pai, imediatamente começou a decorar seu novo espaço, com um colchão de enrolar afegão, um tapete persa e a bandeira do Afeganistão.

    A edificação baixa ao lado de seu novo lar não lhe parece fora do comum de maneira alguma. Mas para um alemão, o formato característico, alongado, é bastante perturbador, e por um bom motivo.

    O novo lar de Ashkan fica em Dachau, um antigo campo de concentração onde os nazistas assassinaram 41,5 mil pessoas, algumas das quais em dolorosas experiências médicas. Na era nazista, o complexo de edifícios em que Ashkan vive era usado como uma escola de medicina alternativa, de base racial, cercada por uma área plantada por trabalhadores escravos e conhecida como "horta das ervas".

    Questionado se a história do local o faz sentir inquietação, Ashkan responde com um sorriso resignado: "Eu queria só ter um teto sobre minha cabeça".

    Com os abrigos e a habitação social sob pressão mesmo antes da atual crise de refugiados, a cidade de Dachau, perto de Munique, decidiu apelar à antiga horta de ervas para abrigar 50 de seus mais vulneráveis habitantes —entre os quais moradores de rua, além de refugiados como Ashkan. O local fica diante do campo principal de Dachau, do outro lado da estrada, cercado de torres de vigilância e muralhas encimadas por arame farpado.

    Os curadores que administram o antigo campo como memorial argumentam que a horta de ervas deveria ser transformada em espaço de memória. Autoridades municipais dizem que precisam do lugar para alojar pessoas que não têm aonde ir. E aprisionadas entre os dois lados ficam pessoas como Ashkan.

    Ele me diz que conhece pouco sobre o passado nazista da Alemanha, e que não teve tempo de visitar o memorial instalado no local do campo principal. "Saio para trabalhar, volto para casa, saio de novo para trabalhar".

    A horta de ervas parece desolada, a despeito do sol de outono. Algumas estufas dilapidadas e uma placa memorial são lembretes de seu passado. Crianças brincam no pátio. A curta distância via trem, em Munique, os alemães estão recebendo dezenas de milhares de sírios, afegãos e iraquianos com aplausos e faixas de "bem-vindos". Mas em Dachau, como em muitas outras pequenas cidades alemãs, a situação é desesperadora, e isso não começou este ano.

    IMPROVISO

    Recentes manchetes vêm tomando como tema os abrigos de emergência improvisados apressadamente pelos alemães —em centros de exposição e barracas montadas para feiras de cerveja— a fim de acomodar novos refugiados. No entanto, acomodação em longo prazo para as pessoas cujos pedidos de asilo estão sendo processados, ou para aquelas a quem foi concedido asilo, representa um problema de igual ordem.

    Em julho, a cidade de Bochum causou consternação ao anunciar que planejava alojar cem pessoas que estão em busca de asilo em contêineres instalados em um cemitério. Houve apelos para transferir mais refugiados à antiga Alemanha Oriental, onde há mais emprego. No entanto, o leste do país também viu protestos furiosos contra esses abrigos, e diversos refugiados em Munique me disseram ter medo de ser mandados para lá. No ano passado, 47% dos ataques racistas ocorridos na Alemanha aconteceram no território da antiga República Democrática Alemã, ainda que a região abrigue apenas 17% da população do país.

    Mas nenhuma das demais opções de acomodação é tão controversa quanto os antigos campos de concentração alemães. Meses atrás, funcionários das prefeituras de Schwerte e Augsburg causaram furor ao mencionarem a possibilidade de acomodar refugiados em áreas externas de campos de concentração. Augsburg abandonou o plano e as autoridades de Schwerte afirmaram que o abrigo para refugiados na verdade foi instalado ao lado do local histórico do campo, e não nele. Em Dachau, por outro lado, funcionários da prefeitura e os curadores do antigo campo continuam em disputa sobre o que fazer com as edificações em questão: lembrar os erros do passado ou atender às necessidades do presente?

    "Para mim, não é muito acolhedor abrigar refugiados em um lugar que simboliza tortura e morte", diz Gabrielle Hammerman, diretora do memorial do campo de concentração de Dachau. O escritório dela fica ao lado de uma vasta praça no campo principal, onde no passado os famintos prisioneiros tremiam de frio por horas durante a chamada. Enquanto conversamos sobre as ideias dela para a horta de ervas, que incluem seu uso como espaço para exposições, visitantes do mundo inteiro caminham pela praça. Recebendo 800 mil turistas por ano, Dachau é um dos memoriais mais visitados da Alemanha. Uma inscrição em uma pedra diz "pense sobre como morremos aqui".

    'MEDICINA ALEMÃ'

    Na era nazista, a horta de ervas do outro lado da estrada era dedicada ao desenvolvimento de formas alternativas de cura. Era parte de uma bizarra tentativa de inventar uma medicina "alemã", já que a medicina convencional era vista como influenciada em excesso por médicos judeus, e portanto como maculada em termos éticos. Nas estufas, plantações e laboratórios em torno das edificações, até 1.600 trabalhadores escravos, em sua maioria judeus, cultivavam e processavam ervas medicinais e flores comestíveis para a população alemã e a Wehrmacht (forças armadas). Depois de seus longos e exaustivos turnos de trabalho, em uniformes puídos e muitas vezes trabalhando sob a chuva, os prisioneiros retornavam ao campo principal.

    Eric Schwab - mai.45/AFP
    FILES - A picture taken at the end of May 1945 shows prisoner's dead bodies in a train as seen by US soldiers near Dachau concentration camp after the US army liberated the camp. American trucks rolled into Dachau, northwest of Munich, on April 29, 1945 to discover the unspeakable horror that had led to more than 41,000 people being killed or having starved or died of disease. German Chancellor Angela Merkel will join elderly survivors of the former Nazi concentration camp at Dachau on May 3, 2015 for a solemn ceremony to mark 70 years since its liberation by US forces. AFP PHOTO / ERIC SCHWAB ORG XMIT: DAC22
    Vagão de trem carrega corpos de prisioneiros de Dachau pouco após a libertação pelas tropas dos EUA

    As notórias experiências médicas dos nazistas, por exemplo submergir prisioneiros em água gelada até que morressem, eram realizadas só no campo principal. Mas na horta de ervas, os detentos sofriam muitas outras formas de crueldade. Os guardas de escalão mais baixo, ou "kapos", às vezes os forçavam a participar de jogos mortíferos. Tiravam o gorro de um prisioneiro, o arremessavam para além da linha de guardas da SS, e o desafiavam a ir apanhá-lo, sabendo que os guardas o abateriam a tiros se tentasse. Caso o prisioneiro não obedecesse à ordem, também era punido. Uma foto no arquivo do campo de Dachau mostra o corpo de Abraham Borenstein, um chapeleiro judeu de Varsóvia, morto na horta de ervas por guardas da SS, em 1941.

    Hammerman acaba de voltar de Israel, onde participou do funeral de um sobrevivente de Dachau. O círculo de sobreviventes se reduz cada vez mais, outro motivo para que ela sinta ser importante proteger o que resta das memórias da experiência no campo. Depois da guerra, quando a habitação era escassa e os alemães estavam ansiosos por bloquear a lembrança do Holocausto, as autoridades locais usaram parte do campo como abrigo para refugiados.

    A horta de ervas continuou a produzir, sob a administração de uma série de empresas, até ser gradualmente transformada em parque industrial. Agora, apenas o pequeno complexo de edificações e estufas resta como testemunha silenciosa dos horrores do passado.

    PREOCUPAÇÕES PRESENTES

    Os atuais moradores da horta de ervas têm pouco tempo para refletir sobre a História, no entanto. Uma mulher romena, mãe de três crianças, me conta ter chegado à Alemanha três anos atrás por não conseguir emprego em seu país. Ela dormiu ao ar livre em sua primeira noite na cidade. No dia seguinte, as autoridades municipais a ajudaram a se mudar para cá. Questionada se a história do lugar a incomoda, ela protesta em tom desesperado: "Para onde mais eu iria, com três filhos? Aqui é melhor. O que posso fazer?"

    As preocupações delas se referem ao presente. "Temos uma catástrofe aqui, as pessoas são agressivas, bebem", ela diz, enquanto seus filhos pequenos brincam no corredor escuro, abraçando-se às suas pernas e correndo entre as filas de roupa para secar.

    Florian Hartmann, prefeito de Dachau, defende o uso atual da horta de ervas como necessidade. Diz que é dever da cidade encontrar acomodações para os desabrigados, diante de uma duradoura escassez de moradia. "As edificações na horta de ervas são usadas para abrigar pessoas que não conseguem alugar um apartamento pelo valor de mercado", ele afirma em mensagem de e-mail. "Elas são os membros mais vulneráveis de nossa sociedade. Dessa forma, as edificações, e seu fardo histórico, podem ser utilizadas para um propósito socialmente significativo".

    O ministério do Interior da Alemanha estima que receberá 800 mil refugiados este ano, e sua acolhida calorosa contrasta fortemente com a frieza, e até hostilidade, demonstrada pelo governo britânico. Os sírios celebraram a chanceler alemã Angela Merkel como sua "mãe compassiva", e gritaram "obrigado, Alemanha" nas ruas. Mas na semana passada o prefeito de Munique declarou que sua cidade havia atingido o limite.

    A Alemanha reimpôs os controles de entrada na fronteira com a Áustria para deter a onda imigratória, suspendendo o acordo de Schengen, que dispõe que viagens entre países membros da comunidade não requerem passaportes e é um dos pilares da União Europeia.

    REAÇÕES EXTREMAS

    As reações na Alemanha foram contraditórias. Houve cenas calorosas de voluntários em Munique distribuindo bichos de pelúcia a crianças sírias refugiadas. Mas em outras partes da Alemanha imagens de abrigos para asilados incendiados e famílias de refugiados aterrorizadas contavam história diferente. O Ministério do Interior alemão registrou 202 ataques contra abrigos de refugiados no primeiro semestre de 2015, número semelhante ao total anual de 2014, e a mídia alemã reportou dezenas de novos ataques em julho e agosto.

    Em pesquisa divulgada este mês, 46% dos alemães orientais e 36% dos alemães ocidentais declararam que o grande número de refugiados que estão chegando ao país lhes causava medo.

    Em Dachau, Ashkan diz que jamais sofreu agressão direta nos cinco anos transcorridos desde que chegou à Alemanha. Mas experimentou formas mais sutis de xenofobia. "Encontrar um apartamento foi difícil", ele diz. "Sempre que digo que sou do Afeganistão, a resposta é 'bem... então não'".

    Um retorno dos campos de concentração é improvável. Mas houve alta nas tendências de direita.

    Christof Stache/AFP
    Workers fix the new entrance gate door with the inscription 'Work sets you free' (Arbeit macht frei) of former concentration camp in Dachau, southern Germany, on April 29, 2015. The old entrance gate had been stolen on November 2, 2014. Dachau was opened in 1933, less than two months after Adolf Hitler became German chancellor, to house political prisoners. More than 200,000 Jews, gays, Roma, political opponents, disabled people and prisoners of war were imprisoned at the camp. Over 41,000 people were killed, starved or died of disease before the US troops liberated it. AFP PHOTO / CHRISTOF STACHE ORG XMIT: CST005
    Trabalhadores reparam inscrição —'O trabalho liberta'— na entrada do campo de concentração de Dachau

    No abrigo comunitário superlotado e ruidoso onde vivia antes, ele dividia um quarto com cinco pessoas —afegãos, iraquianos, sírios, egípcios. Alguns falavam árabe, outros falavam farsi e outros tentavam se comunicar em alemão precário. A frustração de Ashkan não parava de crescer, até que um amigo lhe falou sobre um abrigo operado pela prefeitura. O aluguel mensal era de apenas 60 euros, o lugar era limpo e oferecia privacidade. Ashkan se mudou para lá uma semana antes de minha visita. Ele gostou tanto da casa nova que informou a outro amigo afegão sobre o lugar. No almoço, em companhia de Dania, 20, sua namorada afegã, ele conta sobre sua vida em Herat, onde seu pai era funcionário do governo local.

    "Eu tinha tudo —uma moto, minha família, amigos com quem me encontrava todos os dias. Eu vivia como um príncipe", ele diz. Mas depois que o Taleban matou seu pai, passou a ameaçá-lo. Ele se sente grato pela vida que tem hoje na Alemanha. "Aqui você não precisa se preocupar com a possibilidade de sair de casa de manhã e terminar morto", ele diz. "Você não precisa ter medo de que alguém o mate repentinamente. É bem melhor".

    CULPA HISTÓRICA

    Há quem especule que a recepção amistosa da Alemanha aos refugiados seja uma forma de purgar sua culpa histórica, e embora essa interpretação possa ser mesquinha, ou reduzir a carga que deveria caber a outros países, muitos alemães veem conexão entre os crimes do passado e as responsabilidades do presente.

    "Não foi culpa nossa, mas nossos avós participaram daquilo", diz Peter Himmelsbach, 28, atacadista em Heilbronn, que estava visitando o memorial de Dachau pela primeira vez. "De certa forma, a crise dos refugiados é a chance de fazer algo melhor. Por outro lado, as pessoas esperam demais de nós por conta de nosso passado".

    Um grupo de cadetes da força aérea, em uniformes azuis, tira as boinas respeitosamente ao entrar no campo. O tenente Roman Lehmann, um rapaz sério que lidera o grupo, explica que a visita a um antigo campo de concentração faz parte do treinamento militar básico na Alemanha.

    "É uma forma de tentar garantir que isso não volte a acontecer", ele diz. "Que campos de concentração, em si, voltem a acontecer é provavelmente implausível. Mas se você considerar a situação atual dos refugiados na Alemanha, por exemplo, há uma alta nas tendências direitistas. Vimos incêndios criminosos em abrigos de refugiados. Precisamos desenvolver a ideia de que esse tipo de coisa pode nos trazer aqui, a algo que já experimentamos no passado".

    Como muitas outras cidades alemãs, Dachau fez grandes esforços para ajudar os refugiados. A pequena comunidade de apenas 45 mil habitantes está alojando cerca de 350 refugiados em seu abrigo comunitário. A cidade planeja abrir outro abrigo, para até 100 pessoas, nos próximos meses, e os números podem subir como resultado do influxo atual. Diante de tamanha pressão sobre o espaço disponível, a cidade pode demorar a transferir os atuais ocupantes do campo de Dachau. Hammerman, a diretora do memorial, diz que aceitaria um compromisso que permitiria algum uso das edificações para fins residenciais, e o restante do espaço para seminários e exposições. Negociações entre governos municipais e o governo estadual da Baviera sobre o futuro uso da horta de ervas acontecerão no começo do ano que vem.

    INTEGRAÇÃO

    Enquanto as autoridades decidem o futuro de sua casa, Ashkan e Dania enfrentam as dificuldades de suas tentativas pessoais de conciliar presente e passado. Dania veio do Afeganistão para a Alemanha com sua mãe, quatro anos atrás. Por algum tempo, ela acreditou que seu pai e dois irmãos mais novos estavam mortos, afogados na travessia para a Grécia. Mas ela miraculosamente os reencontrou; ele haviam se separado e seguido a jornada. Agora, todos vivem no mesmo lugar, ainda que, por motivos administrativos, Dania e a mãe vivam em um apartamento e o resto da família no abrigo comunitário. Sua mãe trabalha no McDonald's; Dania está treinando para ser assistente de dentista.

    No Afeganistão, ela teve de parar de estudar depois que o Taleban envenenou a comida em uma escola de meninas local, mas na Alemanha ela recuperou rapidamente o atraso.

    Ela e Ashkan falam alemão muito bem. São exemplos de integração bem sucedida, tendo conseguido realizar o que para milhares de pessoas ainda à espera nos abrigos de emergência de Munique continua a ser um sonho. Mas Dania não consegue superar o trauma de sua apavorante jornada para a segurança e os anos difíceis de assimilação que se seguiram.

    "Não consigo mais sentir alegria", ela diz, com um ar desesperançado. "Costumava dizer a mim mesma que um dia eu teria um apartamento, um dia estaria segura, um dia teria uma educação. Agora tenho tudo isso, mas não consigo desfrutar,"

    Ela e Ashkan brincam carinhosamente durante o almoço, exibindo afeto de uma maneira que não seria provável em seu país de origem. Gradualmente, a tristeza de Dania se converte em sorriso, e quando me acompanham ao portão de saída, no corredor onde cientistas nazistas um dia estudaram medicina natural, os dois parecem relaxados e tranquilos. Quando estou saindo, Ashkan pega na mão de Dania e a beija no rosto. Por um breve momento, eles parecem qualquer casal jovem dividindo seu primeiro apartamento, otimistas, entusiásticos e repletos de esperança quanto ao futuro.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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