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    'Sem Assad, não há fim para guerra síria', diz jornalista

    PATRÍCIA CAMPOS MELLO
    ENVIADA ESPECIAL À SÍRIA

    30/09/2015 02h00

    A falta de estratégia do governo Obama para enfrentar o Estado Islâmico na Síria e no Iraque é cada vez mais óbvia e, sem envolver o ditador Bashar al-Assad, não há solução para a guerra na Síria.

    Esse é o diagnóstico de Patrick Cockburn, jornalista do diário britânico "The Independent" e o maior especialista em Estado Islâmico.

    Os Estados Unidos apostaram que bombardeios aéreos de sua coalizão e treinamento de forças da oposição síria, anunciados pelo presidente Barack Obama no ano passado, iriam deter os radicais.

    O treinamento foi um fiasco completo -resultou na preparação de menos de 60 soldados, sendo que a metade foi morta por extremistas. A meta do Pentágono era ter treinado 5.000 rebeldes sírios para combater o EI.

    Já os 7.000 ataques aéreos da coalizão nos últimos 12 meses ajudaram os curdos a retomarem as cidades de Kobani e Tal Abyad (ambas na Síria), mas não reverteram o controle do EI sobre Raqqa e Mossul (Iraque), as capitais "de facto" da facção, nem o avanço sobre a síria Palmira e a iraquiana Ramadi.

    A opressão das populações sunitas na Síria (pelo ditador alauita Bashar al-Assad) e no Iraque (pelo ex-primeiro-ministro xiita Nuri al-Maliki) possibilitou a ascensão do Estado Islâmico.

    Reprodução/Youtube/The ISIS Factor
    O jornalista Patrick Cockburn (à esquerda) durante entrevista ao escritor Tariq Ali, em setembro de 2014
    O jornalista Patrick Cockburn (à esquerda) durante entrevista ao escritor Tariq Ali, em setembro de 2014

    "O EI estabelece um Estado, com cobrança de impostos, organização e oferta de serviços de saúde em locais onde os sunitas se sentiam marginalizados", disse Cockburn à Folha.

    "Em Ramadi, as pessoas pediam para o governo reabrir um hospital por meses; foi só o EI invadir que a instituição voltou a funcionar. Eles não gostam do EI, mas a alternativa é um não governo ou um governo que os prejudica", disse o autor de "A Origem do Estado Islâmico -o Fracasso da 'Guerra ao Terror' e a Ascensão Jihadista".

    Por isso, a estratégia "técnica" dos EUA e da coalizão não vai resolver o nó da guerra síria e do EI, diz Cockburn.

    TERRITÓRIO

    Hoje, o EI controla uma área equivalente à da Itália, de cerca de 300 mil km², no noroeste do Iraque e nordeste da Síria. A facção tem entre 30 mil e 100 mil milicianos, conforme a estimativa.

    Trata-se do movimento extremista de inspiração islâmica mais bem-sucedido da história: mais violento, mais eficiente e maior que a Al Qaeda. É um dos motivos para o atual êxodo de sírios.

    Na Síria, as atrocidades de Assad deram origem a movimentos de oposição, alguns deles extremistas. Arábia Saudita, Turquia e Qatar, países sunitas e rivais do Irã, começaram a armar a oposição a Assad, alinhado a Teerã.

    Editoria de Arte/Folhapress

    Logo ficou claro que, ao apoiar a oposição supostamente moderada na Síria, potências estrangeiras alimentavam com armas e recursos enviados islamitas radicais como a frente Al Nusra e o EI.

    Esse envolvimento de diversos países, com suas "guerras por procuração" (nas quais outras forças representam seus interesses), complica o cenário.

    Curdos e sua milícia YPG lutam no norte com ajuda de bombardeios aéreos dos EUA. Extremistas do EI, da frente Al Nusra e de outros lutam entre si, contra forças de Assad e contra os curdos. A oposição síria, por meio do Exército Livre da Síria e outros, combate as forças de Assad.

    E há uma percepção disseminada nas áreas curdas da Síria de que a Turquia continua permitindo que estrangeiros passem por sua fronteira para se juntar ao EI e facilita o envio de armas financiadas pela Arábia Saudita aos extremistas. Assim, os turcos combateriam Assad e atrapalhariam os curdos.

    A Turquia propõe a criação de uma "zona segura" no norte da Síria, sem a presença de extremistas islâmicos. Mas essa zona também excluiria os curdos e, na prática, separaria os territórios curdos que obtiveram autonomia.

    A Rússia, por sua vez, é o maior fornecedor de armas a Assad e está aumentando a presença militar na Síria.

    TODOS NA MESA

    "Se quisermos conter a guerra, é preciso levar todos os envolvidos à mesa de negociação, inclusive Assad; e a Rússia é essencial para influenciar Assad", diz Cockburn. "E precisamos de mais força para combater o EI."

    Agora, até mesmo países como Reino Unido e EUA, ferrenhos opositores da ditadura Assad, começam a falar em uma transição negociada com a presença do ditador.

    Será uma tarefa difícil: a Turquia, por exemplo, se opõe. "Deixar Assad no poder é como apaziguar Hitler, não há possibilidade de negociar com ele", disse à Folha Cemalettin Hasimi, porta-voz do premiê da Turquia, Ahmet Davutoglu.

    Segundo Hasimi, não adianta só bombardear o EI: é preciso aumentar o poder da oposição a Assad e ter um governo de transição sem ele.

    Outro impedimento é fazer a opinião pública mundial "engolir" uma negociação com Assad, depois de o ditador ter exterminado dezenas de milhares de civis.

    "Após tantas mortes e ódio, é improvável que a Síria continue a ser um país [unido]; é difícil ver um governo de conciliação", diz Cockburn.

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