• Mundo

    Saturday, 04-May-2024 02:58:40 -03

    Família síria foi vítima de ataque químico feito pelo Estado Islâmico

    C. J. CHIVERS
    DO "THE NEW YORK TIMES"
    EM GAZIANTEPE, TURQUIA

    08/10/2015 07h00

    O alerta da linha de frente chegou por walkie-talkie. Uma posição de artilharia do Estado Islâmico (EI) havia disparado a leste, o que significava que um projétil estava avançando na direção de Marea, uma cidade em uma planície agrícola do norte da Síria.

    "Um tiro disparado, cuidado!", disse a voz no rádio.

    Dentro da casa em que vivia com sua família, Abu Anas Ishara, combatente rebelde que estava defendendo sua cidade, já conhecia a rotina. Normalmente, passam-se entre 10 e 15 segundos entre o disparo de um tiro e sua detonação.

    Mas Marea já havia sido atingida tantas vezes que Abu Anas estava cansado. Não buscou proteção. Sua mulher, Nada, continuou a amamentar Sidra, a filha do casal, nascida por cesariana cinco dias antes.

    A granada de artilharia atingiu o telhado da casa da família.

    O casal se viu envolvido em poeira e em uma fumaça mal cheirosa. Shahad, sua filha de três anos, estava pedindo ajuda.

    "Papai!", ela gritou.

    Abu Anas e Nada saíram cambaleando da casa, cada qual carregando uma filha, todos aparentemente ilesos. Era a manhã de 21 de agosto.

    Foi assim que começou, para eles, a confusão e a dor lancinante de um ataque químico.

    Atingida por um disparo distante de uma granada que continha um agente vesicante (que produz vesículas na pele), a família sofreria uma forma altamente dolorosa de violência, que desde 1990 –quando a Convenção sobre Armas Químicas foi adotada em boa parte do mundo– parecia ter se tornado parte do passado. Até que o Estado Islâmico a revivesse.

    Desde o segundo trimestre, o grupo –unindo-se ao governo da Síria entre os participantes do conflito que recorreram a armas químicas– usou dois tipos de armas químicas múltiplas vezes, no Iraque e na Síria, de acordo com analistas internacionais de armas, vítimas, ativistas locais e funcionários do governos ocidentais.

    IMPROVISADOS

    As armas incluem bombas improvisadas contendo cloro, um produto químico industrial que militantes sunitas do Iraque empregam contra veículos há mais de uma década. Há também projéteis com um agente vesicante, que apareceu nas últimas semanas, disparado de posições de combate do Estado Islâmico.

    De acordo com funcionários do governo norte-americano que viram amostras de terra, fragmentos de projéteis e roupas de vítimas, recolhidos em diversos locais atacados, os projéteis contém mostarda sulfúrica, um agente de guerra química já proscrito internacionalmente.

    Dois funcionários norte-americanos afirmaram que itens analisados depois do ataque de 21 de agosto a Marea estavam entre as provas que confirmam o uso do agente químico.

    Como é comum nas áreas da Síria que vivem em estado de sítio em razão dos combates, a maioria das casas de Marea estavam vazias. Os antigos moradores da cidade as abandonaram, optando pela indignidade e incerteza de uma vida como refugiados aos perigos e às perspectivas cada vez mais reduzidas de paz em casa.

    Mas algumas casas continuaram ocupadas, muitas vezes por pessoas orgulhosas, teimosas ou pobres demais para partir, ou pelas famílias dos rebeldes que ficaram para combater. Dezenas dos moradores restantes de Marea foram expostos, muitos deles de maneira apenas amena, ao agente químico, disseram as autoridades médicas locais.

    Abu Anas e Nada, e membros de sua família, concordaram em conceder entrevistas sobre sua exposição muito mais pesada ao ataque, sob a condição de que seus sobrenomes não sejam revelados porque eles temem retaliação da parte do Estado Islâmico.

    UM TIPO DIFERENTE DE ATAQUE

    Abu Anas havia ouvido falar sobre a existência de provas de ataques químicos anteriores, o que incluía o uso de gás dos nervos e cloro, pelo regime de Bashar al-Assad. Ele não suspeitava que os militantes islâmicos também dispusessem de armas químicas.

    Havia algo de diferente naquele projétil. Ele atingiu a laje de concreto reforçado, mas fez apenas um buraco em forma de pera com alguns metros de extensão. Não explodiu, como a maioria dos projéteis faz.

    O clarão de fogo, a pressão e a saraivada de estilhaços fumegantes, capazes de matar pessoas instantaneamente, não aconteceram.

    Em lugar disso, diz Abu Anas, enquanto a poeira caía sobre ele, a sensação era a de estar sendo revestido de areia quente. Não demorou para que sua casa fosse tomada por um odor. O cheiro, ele diz, era de "ovos podres, ou alho podre, algo podre". E ele o sentia também em suas roupas.

    A mostarda sulfúrica causa queimaduras capazes de danificar a pele, os olhos e o aparelho respiratório. Carcinogênica e extremamente tóxica, ela também pode causar danos internos, o que inclui danos à medula óssea, reduzindo a produção de glóbulos sanguíneos. Exposição pesada pode causar morte em questão de dias.

    Mas os efeitos não são imediatos. Os sintomas em geral surgem só depois de algumas horas.

    Nada, igualmente, ficou tentando imaginar o que havia acontecido. Ela não mostrou sintomas, inicialmente. Depois de se abrigarem em uma casa vizinha, ela e o marido voltaram à casa deles diversas vezes para apanhar pertences. Abu Anas gravou no celular um vídeo do teto quebrado e das paredes marcadas por perfurações, como que para dizer que a família tinha sorte por estar viva.

    Mas à medida que as horas passavam, Nada não conseguia confortar sua recém-nascida, Sidra, embora não tivesse encontrado marcas ou feridas no bebê. Ela parecia muito doente, e Nada não sabia o motivo.

    "Tentou dar-lhe um banho", conta Nada. "Lavei seu rosto e corpo, mas ela não parava de chorar".

    À medida que a tarde passava, a família começou a apresentar sintomas inconfundíveis. Shahad se queixava de uma dor de garganta. A bebê estava silenciosa, acordada, mas assustadoramente quieta, quase imóvel. Os olhos de Abu Anas pareciam queimar. Lágrimas corriam pelo seu rosto e ele sentia náusea.

    Abu Anas e Nada apanharam as filhas e saíram em busca de ajuda.

    Onde fica Marea

    BOLHAS E DOR INSUPORTÁVEL

    Horas mais tarde, a equipe de um hospital de campo em Marea examinou a bebê e instou a família a procurar tratamento melhor.

    Uma ambulância os levou a um hospital na vizinha Tel Rifaat. Lá, contam Nada e Abu Anas, um administrador lhes informou de que haviam sido expostos a armas químicas, e que precisavam de tratamento na Turquia. Ordenou que o motorista os levasse para o norte, o mais rapidamente possível.

    Quando a família atravessou a fronteira, já era noite. No primeiro hospital a que foram levados, em Kilis, eles receberam máscaras de proteção e foram avaliados.

    Haviam surgido bolhas na bebê Sidra, e elas começavam a aparecer na pele de Shahad, que estava tossindo.

    A equipe médica começou a descontaminá-los, tentando remover todos os traços do agente químico de suas peles, conta Abu Anas. As duas menininhas choravam e gritavam, sem controle. Incapaz de consolá-las ou aliviar suas dores, ele se sentia impotente.

    Os médicos informaram a Nada e Abu Anas que suas filhas estavam muito doentes, e depois separaram a família e começaram a examinar os adultos.

    "Cortaram minhas roupas, e fiquei nu; em seguida começaram a me esguichar com uma mangueira de pressão com um bocal largo", diz Abu Nadas.

    Os médicos encontraram bolhas recém-surgidas no topo de suas costas, onde o agente químico aparentemente havia se infiltrado por suas roupas.

    Até lá, ele conta que não havia percebido estar queimado. Mas, quando a água o atingiu, a dor que sentiu foi excruciante. Ele vomitou de novo.

    As queimaduras de Nada eram mais extensas, e se espalhavam por porção maior de seu corpo.

    Os médicos internaram as meninas e transferiram o casal a um hospital maior em Gaziantepe, onde, apesar das objeções de Abu Anas quanto a uma dor que ele não acreditava que conseguiria suportar, ele e a mulher foram descontaminados pela segunda vez.

    O casal jamais reviu sua filha mais nova. Por quase duas semanas, os médicos esconderam os detalhes da situação de Sidra, contam Abu Anas e Nada, enquanto a menina definhava.

    Ela morreu em 4 de setembro. A equipe do hospital mostrou a Nada uma foto de sua bebê, queimada e inchada. Boa parte de seu cabelo parecia ter sido escaldado.

    "Disseram-me que ela morreu, e que agora é um dos pássaros do paraíso", ela diz.

    Nada havia carregado Sidra por nove meses, só para perdê-la em questão de dias. O tempo que tiveram juntas foi curto demais, disse Nada, até para absorver as lembranças da aparência da menina.

    "Os olhos dela estavam sempre fechados", ela diz, "como se não quisesse a vida".

    UM SEPULTAMENTO SIMPLES

    Em 7 de setembro, o hospital liberou o corpo da menina aos cuidados de dois irmãos de Abu Anas, que foram levados de carro, com o corpo, a um cemitério do lado do aeroporto de Gaziantepe.

    Pela metade de setembro, as queimaduras dos três sobreviventes já estavam cicatrizadas.

    Shahad –queimada no abdômen, braços, costas e pernas, mas em recuperação– se reuniu aos pais. Eles trocaram os leitos de hospital por colchões em um apartamento superlotado alugado por Adel, o pai de Nada, mecânico de carros e também refugiado.

    Fraco, sem fôlego e com expressão de dor, usando óculos escuros dentro de casa enquanto repousava ao lado de um saco de lixo repleto de lenços de papel sujos, Abu Anas estava à espera de espaço em um campo de refugiados turco.

    Lá a família precisaria de muitos meses mais para se curar, ele disse –para que a pele queimada parasse de coçar e arder, para que a respiração se tornasse mais fácil e desobstruída, para que a visão retornasse.

    Depois, eles teriam de esperar pelo fim da interminável guerra da Síria –mas sem Sidra, morta pelo agente de mostarda sulfúrica antes de completar sua primeira semana de vida.

    "Deus a amava", disse Adel, e por isso a levou, para poupá-la de novos sofrimentos que ninguém deveria ter de suportar.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

    [an error occurred while processing this directive]

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024