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    Análise

    Na Síria, a população perdeu a voz sobre a guerra civil

    FERNANDO BRANCOLI
    ESPECIAL PARA A FOLHA, EM DAMASCO

    17/10/2015 02h00

    As ruas esburacadas de Damasco são um microcosmo da guerra civil da Síria. Cafés ainda lotados são palco de constantes discussões —muitas vezes violentas— sobre os rumos do país e possíveis soluções para o conflito que já dura mais de quatro anos.

    Assim, não surpreende que a decisão da Rússia de aumentar consideravelmente sua presença militar na Síria, nas últimas semanas, seja um tema onipresente em qualquer roda de conversa.

    Independentemente das interpretações sobre os objetivos de Vladimir Putin, é interessante ressaltar que a maior parte das opiniões locais converge para um tema: ninguém parece levar em consideração as vontades da população síria, por mais múltiplas que elas sejam.

    A materialização dessa reclamação foi feita a mim há pouco tempo por um jovem em um restaurante perto da área das embaixadas, que parece cada vez mais apinhada de russos: "A guerra já não diz mais respeito aos sírios".

    O desabafo encontra respaldo nas últimas movimentações geopolíticas.

    Desde que Moscou anunciou o envio de tropas e material militar para auxiliar o governo de Bashar al-Assad, países ocidentais, sobretudo os EUA, se retraíram em reflexões sobre como responder.

    Em Washington, especialistas se desdobraram em sugestões ao governo, que vão de encarar Putin como um aliado contra o Estado Islâmico à criação de uma coalizão que enfrente um suposto eixo Damasco-Teerã-Moscou.

    Por mais distintas que sejam as indicações, todas elas reforçam que o conflito na Síria se trata de desdobramentos de uma nova Guerra Fria ou resultado de confrontos entre sunitas e xiitas.

    PRIMEIRO PLANO

    A população síria, nesses cálculos, é vista de maneira utilitarista e sem grande capacidade de ação —normalmente, como massa de manobra para grupos fundamentalistas.

    A complexidade de encarar os sírios como atores capazes de fomentar o próprio destino está justamente na fragmentação de seus interesses. Isso envolve encarar as atuais bases de sustentação de Assad.

    Até o fim de 2014, Damasco era o centro inconteste do poder do governo, e a própria manutenção da cidade como "campo de normalidade" materializava esse discurso.

    A situação hoje é outra. Áreas da cidade passam por racionamento de energia, o Exército sírio sofre deserções em massa e muitas famílias importantes deixaram o país nas últimas semanas.

    Esse quadro se mostra paradoxal: Assad perde cada vez mais apoio popular, mas a falta de opções —sobretudo com a emergência do Estado Islâmico— continua impelindo muitos para o governo.

    A análise sobre grupos que podem surgir no vácuo de legitimidade é talvez a reflexão mais importante que precisa ser feita da guerra da Síria.

    Não se trata de ignorar que tal conflito seja um tema global, com interesses diversos e transbordamentos importantes nas áreas humanitárias e de segurança.

    Porém, a ideia de que a guerra civil será solucionada apenas pelas grandes potências, um meio termo entre Obama e Putin, é fantasiosa.

    A interpretação de que todo conflito, em última instância, é semelhante e pode ser reduzido a poucas variáveis racionais só funciona para aqueles que nunca estiveram em um ambiente coercitivo.

    Ignorar dinâmicas, ressignificações e principalmente vontades locais, por mais múltiplas que sejam, é reforçar modelos de paz que não são duradouros.

    Por mais difícil que seja encontrar um meio termo entre ferramentas internacionais de solução de conflitos e práticas locais, esse exercício se mostra o mais promissor.

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