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    'Não sou traidor', afirma opositor venezuelano que virou chavista

    SAMY ADGHIRNI
    DE CARACAS

    28/10/2015 17h16

    Em 2007, o líder estudantil Ricardo Sánchez foi um dos maiores expoentes da bem-sucedida campanha que selou a vitória do "não" no referendo constitucional com o qual o então presidente Hugo Chávez pretendia multiplicar seus poderes na Venezuela.

    No mesmo ano, Sánchez também protagonizou a luta –esta, inútil– para impedir o fechamento pelo governo da emblemática TV opositora Radio Caracas Television.

    Desde então, porém, o jovem político foi tomando distância da oposição até aderir de vez, no último dia 15 de agosto, ao Grande Polo Patriótico, coalizão chavista que governa o país.

    Aos 32 anos, Sánchez é hoje deputado pelo Estado de Miranda, que abrange Caracas.

    Ele ocupa o cargo desde que a titular, a opositora radical María Corina Machada, foi destituída em 2014 por ter aceitado um cargo diplomático simbólico oferecido pelo Panamá numa reunião da OEA (Organização dos Estados Americanos).

    Candidato chavista na eleição parlamentar de dezembro, Sánchez concedeu entrevista à Folha na Comissão de Política Interior da Assembleia Nacional.

    Na conversa de uma hora e meia, ele negou ser oportunista ou traidor e acusou a oposição de ser golpista e irresponsável.

    Sánchez disse que a gota d'água para romper com antigos aliados foi a suposta decisão de setores da oposição de ficar do lado dos EUA em vez de apoiar o presidente Nicolás Maduro em recentes episódios de tensão diplomática.

    O deputado, porém, critica o golpe lançado por Chávez em 1992 e se disse favorável à presença de observadores na eleição parlamentar.

    Miguel Gutierrez - 15.out.2015/Efe
    Ricardo Sánchez cumprimenta a presidente do Conselho Nacional Eleitoral, Tibisay Lucena
    Ricardo Sánchez cumprimenta a presidente do Conselho Nacional Eleitoral, Tibisay Lucena

    *

    Folha - Como o senhor passou de um líder estudantil opositor a um membro do movimento chavista?
    Ricardo Sánchez - Entrei na política como líder estudantil. Primeiro, fui eleito e reeleito no Centro Acadêmico da Universidade Central da Venezuela para lutar por melhores bolsas de estudos, transporte e restaurante universitário.

    Em 2007, me tornei conhecido nacionalmente por liderar o movimento contra o fechamento da RCTV e pelo "não" no referendo constitucional.

    Até hoje, é a única eleição nacional em que a oposição derrotou chavismo. Eu já fazia parte da MUD (coalizão opositora Mesa da Unidade Democrática) quando, na preparação para a campanha da eleição parlamentar de 2010, manifestei desejo de ser candidato. Disseram-me, porém, que eu não poderia ser candidato porque a escolhida para concorrer no meu circuito era María Corina Machado. Por que ela? Porque a família dela estava financiando a campanha da MUD.

    Mas María Corina Machado acabou eleita com número recorde de votos.
    Ela teve 235 mil votos no circuito dela. E quando ela foi candidata nas primárias para a Presidência, em todo o país, obteve apenas 114 mil. A explicação é que, no circuito, todos os candidatos da MUD tivemos de apoiá-la, enquanto na presidencial ela foi sozinha, por conta própria.

    Como era sua relação com ela quando o senhor era seu suplente?
    Nunca foi boa. Como poderia ser diferente nessas condições? Todo mundo me dizia "chegará sua hora, você é muito jovem", mas em 2007 ninguém me disse isso quando participávamos da campanha contra a reforma constitucional.

    Percebemos que nós, os jovens estudantes, servíamos para protestar e trancar ruas, mas quando aspirávamos a eleições, éramos excluídos. Em 2012, decidi sair da MUD. Outros dois deputados fizeram a mesma coisa, Carlos Vargas e Andrés Avelino Alvarez. Fomos embora, no dia 30 de outubro daquele ano.

    Mas por que o senhor continuou com a oposição até agosto deste ano?
    Não com a oposição, mas com uma terceira via. Nossa ideia era que a oposição não contribuía de forma positiva ao país. É a única oposição que se diz democrática, mas apoiou um golpe de Estado [contra Chávez, em 2002].

    A MUD diz que acredita no desenvolvimento do país, mas fez greve petroleira [em 2003]. Diz que quer participação, mas boicotou a eleição parlamentar [de 2005]. Diz que quer luta pacífica, mas montou protestos violentos [em 2013 e 2014]. Não apoiamos nada disso.

    E aí chegamos a um ponto em que pensamos: não podemos ser tão sem-vergonhas de estar em desacordo com algo e continuar aí.

    Chávez também deu um golpe de Estado [quando era oficial do Exército, em 1992].
    Sim, mas nós não estivemos de acordo com isso. Além do que, Chávez pagou com cadeia por seus atos e depois retificou seu rumo. Ele fez um ato de expiação, de reflexão, e se comprometeu na via democrática até ganhar as eleições.

    Não vi a MUD fazer a mesma coisa [em relação a 2002].

    Houve algum fato determinante para que o senhor aderisse de vez ao chavismo?
    Quando o presidente Nicolás Maduro convocou a unidade nacional diante de algo tão extraordinário como o decreto de Obama [ordem executiva da Casa Branca adotada em fevereiro que incluiu a Venezuela na lista das ameaças à segurança nacional dos EUA e impôs sanções a autoridades chavistas], tivemos de apoiá-lo.

    Henry Falcon [governador do Estado de Lara], que não é chavista, o apoiou.

    O papa Francisco, a OEA, a Unasul, todo mundo se posicionou contra o decreto, mas a MUD o aplaudiu. Ser indiferente numa conjuntura como essa equivale a ser cúmplice. Aí você percebe que há atores internos que estão confabulando com a agenda externa.

    Outro elemento foi o Essequibo [território, hoje parte da Guiana, que Venezuela reivindica]. Capriles defendeu a posição de Georgetown, isso é uma vergonha. Esperava mais dele. A partir desses dois fatos, já não podíamos estar na terceira via. Foi a gota d'água.

    Chávez não só havia ignorado a disputa como também havia sido muito generoso com a Guiana, ao enviar petróleo subsidiado. Por que Maduro decidiu reavivar este problema agora?
    Muita gente queria que a gente entrasse com tanques no Essequibo. Isso é o que defende María Corina. Ela quer que a Venezuela chegue metendo bala. Por que [a oposição] não fez isso quando tinha o controle do Exército? Chávez soube manejar a relação com a Guiana, e nós concordamos com isso.

    Quem começou esta crise foi [o presidente guianês David] Granger, não foi Maduro. Granger autorizou a [petroleira americana] Exxon a explorar petróleo nas nossas águas [em maio deste ano]. Foi uma posição belicosa.

    O que o atrai no chavismo?
    A solidariedade, a nobreza, o compromisso, a entrega, a luta, a paixão pelo que se acredita. Que país do mundo que enfrente as mesmas dificuldades que estamos atravessando conseguiria manter a construção de casas populares? Que país continuaria aumentando as pensões e os salários e mantendo educação pública e gratuita até o fim da universidade nesse contexto tão difícil? Cite-me apenas um.

    A oposição não enxerga isso. Aqui na Venezuela houve crises terríveis, que foram obra das pessoas que governavam este país. Henrique Capriles era deputado do Copei, um partido tradicional. Ele chegou a ser vice-presidente do Congresso e teve participação direta na tomada de decisões da Quarta República [o regime que antecedeu a chegada ao poder de Chávez, em 1999].

    O chavismo não é uma causa, é uma consequência daquilo que vivemos nos anos 1990. Entregaram o país ao FMI (Fundo Monetário Internacional). Naquela crise não havia aumento de salários nem concessão de créditos hipotecários.

    O senhor não tem críticas ao chavismo?
    Tenho muitas. A revolução, por exemplo, vem carecendo de eficiência. A eficiência não é um elemento pequeno burguês. Também é preciso aprofundar a luta contra a corrupção. O tema da segurança finalmente se abordou com a OLP (Organização para a Liberação do Povo, operações contra o crime organizado), mas ainda é preciso avançar. E aí a MUD sai a defender os direitos humanos dos criminosos. E os direitos humanos das pessoas comuns, onde estão?

    Por que o senhor não entra de vez no partido Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV, sigla criada por Chávez)?
    Porque nosso processo de incorporação ao Grande Polo Patriótico não é um processo de oportunismo nem de cálculo político. O polo tem matizes, não é uma esquerda monolítica. Hoje o setor mais moderado desta esquerda somos nós e o Podemos. Somos social-democratas.

    O PSUV tem seu eleitorado, suas ideias, um discurso, uma liderança consolidada. Nós vamos em direção a outros setores. O PSUV é a coluna vertebral da revolução, nós somos uma força complementar da revolução.

    O que responde aos que o acusam de ser um traidor e talvez até um vendido?
    Respondo que quem traiu foram os outros, não eu. Quem apareceu num vídeo recebendo propina, o deputado Ricardo Caldera [então membro da MUD] ou eu? Quem traiu nossa soberania? Eu ou María Corina Machado sentada numa embaixada no Panamá? Quem traiu o povo venezuelano? Eu ou Henrique Capriles, que foi apoiar o governo de Granger em Georgetown? Quem traiu quem? São eles que precisam se questionar.

    Qual o maior desafio da Venezuela?
    É o que as pesquisas estão mostrando: o alto custo da vida, o desabastecimento, a insegurança. Precisamos criar condições para a reativação produtiva e econômica do país.

    Mas o governo não parece seguir este caminho. As importações só aumentam, assim como o endividamento.
    Então por que a empresa Polar [maior grupo privado do país, que produz bebidas e alimentos] e seu dono Lorenzo Mendonza, que têm capital de US$ 2,8 bilhões com o qual podem fazer o que bem entendem, continuam ao Estado pedindo dólares [a câmbio preferencial para importar insumos e matérias primas]? Eu defendo que não haja mais dólares para Mendoza. O problema não é o governo, é o empresariado. Será que a Odebrecht pede dólares a Dilma Rousseff para tocar suas obras no Panamá?

    No Brasil não existe controle de câmbio.
    O problema não é controle de câmbio, o problema é que os empresários venezuelanos continuam dependendo dos dólares do governo. Lorenzo Mendoza pode muito bem pegar seus dólares e importar o que quiser e como quiser, isso não está proibido. É muito fácil ser empresário com os dólares do governo.

    Depois Mendoza posa de empresário global em Davos. Ele é um parasita. Ele e tantos outros. As grandes famílias que detêm os meios de produção sempre viveram encostadas no Estado venezuelano. É assim há 300 anos. Aí você diz que não há mais dólares e eles gritam: "seus comunistas!".

    Por que o órgão eleitoral da Venezuela rejeitou o magistrado e ex-ministro brasileiro Nelson Jobim para chefiar a missão de observação da Unasul na eleição de 6 de dezembro?
    Não sei por que o CNE (Conselho Nacional Eleitoral) tecnicamente não aceitou o acompanhamento de Jobim. Tem deputados da União Europeia ou do Parlamento Latino que nos chamam de ditadura e dizem que estamos pior que a Libéria ou Serra Leoa e depois vêm querer palpitar aqui. Aí fica difícil ter posição imparcial.

    Não estou dizendo que seja o caso do Jobim. Dito isso, nós achamos que a democracia se fortalece com mais democracia. Nossa posição é que qualquer pessoa com boas intenções será bem-vinda na Venezuela para que haja melhor convivência e melhor clima de diálogo e melhor transparência. Isso é positivo. Mas o CNE não pode ceder a pressões políticas.

    É irresponsável que a oposição diga que o único resultado na eleição será o que os favoreça. E quem paga pelas 11 pessoas que morreram quando Henrique Capriles disse que a eleição [presidencial de 2013] foi roubada? Se ele for detido, vão dizer que ele é um preso político.

    Como vê o caso do promotor Franklin Nieves, responsável pelo caso do Leopoldo López, que fugiu para os EUA e está dizendo que todo o processo foi uma farsa?
    Me parece muito suspeito que esse sujeito tenha saído do país dessa forma. Isso prova que há influências internas na nossa agenda interna. Ele disse ter sido pressionado? Onde? Ele também disse que a polícia política o vigiava na porta de casa. E como, então, ele conseguiu sair tranquilamente do país levando toda a família? Há claramente a mão de Washington nisso.

    López foi condenado a quase 14 anos de prisão com base em acusações frágeis, como a de que ele enviava mensagens subliminares e dominava a arte do discurso.
    Já organizei e liderei mais de 60 protestos contra Chávez. Nunca prenderam ou mataram nenhum dos meus estudantes. Sabe por quê? Porque é preciso ser responsável com a mãe desses meninos. Quando houve gente dos nosso protestos que queria fazer baderna e partir para a violência, os primeiros a pará-los éramos nós. Prendíamos e entregávamos à polícia. Leopoldo López nunca fez isso. Ele mandou as pessoas para as ruas e se escondeu. É um irresponsável.

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